domingo, 15 de agosto de 2010

O Quadro


A nova diretoria, liderada por Leandro Alves, homem culto e inteligente, pretendia dinamizar o trabalho do Centro e, sobretudo, renová-lo, buscando superar velhas práticas não compatíveis com os postulados espíritas.

Fazia parte do elenco de mudanças o recolhimento de velho quadro situado em local de destaque no salão de reuniões, onde aparecia simpática figura de preto velho. Segundo os antigos, fora pintado nos primórdios da instituição, conforme a descrição de um médium vidente.

A pintura era muito ruim. Não merecia nem mesmo ficar na biblioteca, conforme idéia inicial. Melhor levá-la para o depósito de velharias e depois dar-lhe fim. Assim raciocinava o presidente, enquanto retirava o quadro.

Naquela mesma noite, em concorrida reunião de assistência espiritual, o pessoal logo percebeu a ausência da pintura. Leandro, diplomaticamente, explicou sua posição, inspirada em princípios doutrinários. O Espiritismo não admitia nenhum tipo de prática exterior. A presença do quadro sugeria um ícone, à semelhança das igrejas orientais, objeto de culto, inspirando posturas idólatras. Embora o respeito e a admiração que a diretoria devotava ao querido mentor, tal presença no salão de reuniões era incompatível com a pureza da doutrina.

Suas ponderações não foram recebidas pacificamente... Antigos colaboradores situaram a medida por desrespeitosa. Afinal, o quadro estava ali há anos e nunca incomodara ninguém. Pelo contrário servia de preciosa inspiração. Pessoas aflitas e perturbadas emocionavam-se evocando o mentor, tendo os olhos pousados em sua figura venerável, por si só capaz de oferecer-lhes conforto e tranqüilidade.

A discussão acirrou-se, resvalando para a agressividade. Vendo que o ambiente se tumultuava, Leandro houve por bem encerrar a reunião, não sem antes informar que a iniciativa era da diretoria e tinha caráter irrevogável.

Entretanto, o assunto não morreu. Pelo contrário: recrudesceu, gerando confusão e desentendimento. O processo culminou com um abaixo assinado firmado por praticamente todos os freqüentadores. Pretendia-se que o quadro fosse "reabilitado" ou deixariam a instituição.

Ante a gravidade da situação, a diretoria reuniu-se extraordinariamente. O assunto foi longamente debatido e chegou-se a uma decisão por unanimidade, mesmo porque qualquer alternativa seria desastrosa, deixando o centro vazio.

No dia seguinte o quadro voltou ao salão de reuniões...

É importante a atualização doutrinária. Muitas organizações espíritas desenvolvem atividades distanciadas dos postulados espíritas. É preciso renovar, superar crendices, mitos, superstições...
Imperioso reconhecer, entretanto, que antes de renovar as práticas é preciso preparar os praticantes. Medidas administrativas unilaterais, em confronto com as aspirações do grupo, tendem à desarmonia, revelando-se contraproducentes.


Indispensável, por isso, imitar a sabedoria da Natureza, que não avança aos saltos, usando os ingredientes da tolerância e da compreensão, com estímulo ao estudo metodizado, a fim de que os próprios participantes das coletividades espíritas amadureçam e, por si mesmos, decidam-se às modificações necessárias.


Richard Simonetti