terça-feira, 17 de abril de 2012

Resumidamente, a História de O Livro dos Espíritos.


Na imagem acima as primeiras experiências, destacando as reuniões familiares, a utilização da cesta de bico até os dias de hoje.


HISTÓRICO DE O LIVRO DOS ESPÍRITOS – Jorge Hessen




Foi por volta de 1854 que Denizard Hippolyte León Rivail ouviu falar pela primeira vez das mesas girantes ao encontrar-se com o magnetizador Sr. Fortier, que lhe narrou tais fatos. Não foi cético ao extremo, pois conhecia o magnetismo e sabia que o fluído magnético, uma espécie de eletricidade, podia atuar sobre os corpos inertes. Mas pouco tempo depois, em outro encontro, ao lhe narrar outros fatos sobre a mesa girante no intuito de convencer Rivail, este lhe respondeu: “Só acreditarei vendo, e quando me provarem que a mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e que pode tornar-se sonâmbula.” (1)

No início de 1855, encontrou-se com um amigo que o conhecia há 25 anos, o Sr. Carlotti, que lhe falou, também, desses fenômenos. Como era ardente e apaixonado, além de possuidor de uma bela alma, não se deixou de pronto convencer pela exaltação do amigo. Apenas lhe respondeu: “Não digo que não. Veremos mais tarde.” (1)




Em maio de 1855, estando na casa da sonâmbula Sra. Roger com o Sr. Fortier, magnetizador dela, encontrou-se com o Sr. Pâtier e a Sra. Plainemason, que lhe falaram sobre as mesas girantes, mas agora em outro tom, instrutivo e sério, convidando-o a assistir às experiências que se realizavam em casa da Sra. de Planemaison, à rua Grange-Batelière nº 18. Rivail aceitou solícito em encontro marcado para uma terça-feira às 8 horas da noite.

Foi ali que Rivail testemunhou pela primeira vez o fenômeno das mesas girantes que saltavam e corriam em condições indubitáveis. Inclusive, presenciou ele igualmente alguns ensaios, ainda imperfeitos, da escrita mediúnica numa ardósia com o auxílio de uma cesta.

Atento, entreviu no fundo daquela suposta futilidade algo de sério, um fato que devia ter uma causa, poderia estar ali a revelação de uma nova lei, e prometeu a si mesmo que iria investigar a fundo para encontrar a causa desses acontecimentos surpreendentes.

Em uma dessas reuniões da Sra. Plaineimaison conheceu a família Baudin. Foi quando o Sr. Baudin o convidou para assistir às sessões que aconteciam semanalmente em sua casa, à Rua Rochechouart. Surgia aí uma oportunidade para estudar e observar mais atentamente as causas geradoras desses fenômenos. Rivail passou a ser um frequentador assíduo dessas reuniões assaz concorridas, já que a entrada era franqueada a todo e qualquer interessado.

Duas médiuns, filhas do Sr. Baudin, escreviam numa ardósia com o auxílio da cesta, chamada pião, mostrada na figura anterior. A cesta nada mais é do que um porta-lápis e um apêndice da mão ou um intermediário entre a mão e o lápis (2). Esse método requer a participação de duas pessoas, excluindo assim a possibilidade da influência das idéias do médium. Foi assim que Rivail presenciou comunicações seguidas de respostas dadas às questões apresentadas, inclusive às perguntas que eram feitas mentalmente, fazendo entrever, com evidência, a intervenção de uma inteligência estranha atuando através do médium.

Com o tempo a cesta pião foi substituída por uma espécie de mesa em miniatura, com três pés, sendo um deles o suporte do lápis. Diversos outros dispositivos foram desenvolvidos. Finalmente, chegou-se à conclusão de que os Espíritos poderiam agir diretamente na mão do médium (como geralmente escrevemos), e esse método é usado até os dias de hoje (ver figuras acima).

  
O Espírito que habitualmente se manifestava dava o nome de Zéfiro, completamente de acordo com o seu caráter e o da reunião, onde os assuntos tratados eram geralmente frívolos, tratando da vida mundana e do futuro da vida material de cada um dos presentes que o consultava.

Diz Rivail que, apesar de tudo, o Espírito Zéfiro era muito bom, e declarava-se protetor da família, sabia fazer rir os participantes, e, quando era necessário, dava bons conselhos, muitas vezes, com ditos satíricos e espirituosos.

Em pouco tempo Zéfiro lhe ofereceu provas de grande simpatia, onde mais tarde, assistido por Espíritos superiores, ajudou-o significativamente nos seus primeiros trabalhos espíritas.

Foi nessas reuniões, na casa da família Baudin, que ele desenvolveu seus primeiros trabalhos importantes sobre Espiritismo, muito mais pela observação do que pelas revelações.

Diz Rivail sobre o seu trabalho iniciático do Espiritismo:

“Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método da experimentação; jamais utilizei teorias preconcebidas: observava atentamente, comparava, deduzia as conseqüências; dos efeitos procurava remontar às causas, pela dedução e o encadeamento lógico dos fatos, não admitindo uma explicação como válida senão quando podia resolver todas as dificuldades da questão. Foi assim que sempre procedi em meus trabalhos anteriores, desde os 15 anos de idade. Compreendi, desde logo, a seriedade da exploração que iria empreender; entrevi, nesses fenômenos, a chave do problema, tão obscuro e tão controverso, do passado e do futuro da Humanidade, a solução do que havia procurado em toda a minha vida; era, em uma palavra, toda uma revelação nas idéias e nas crenças; seria preciso, pois, agir com circunspeção, e não levianamente; ser positivo e não idealista, para não se deixar iludir.

Um dos primeiros resultados de minhas observações foi que os Espíritos, não sendo outros senão as almas dos homens, não tinham a soberana sabedoria, nem a soberana ciência; que o seu saber estava limitado ao grau de seu adiantamento, e que a sua opinião não tinha senão o valor de uma opinião pessoal. Essa verdade, reconhecida desde o princípio, me preservou do grande escolho de crer em sua infalibilidade, e me impediu de formular teorias prematuras sobre o dizer de um só ou de alguns.” (1)

O fato da possibilidade da comunicação com os Espíritos, não importando o que dissessem, provava a existência de um mundo invisível. Um campo imenso às suas explorações que indicavam, também, ser a chave de uma multidão de fenômenos inexplicados. Outro ponto importante é que ele poderia conhecer o estado desse mundo bem como os seus hábitos e costumes. Rivail percebeu em pouco tempo que cada Espírito que se comunicava, pela sua posição pessoal e pelo seu conhecimento, cada um, lhe desvendava algum aspecto desse mundo invisível, da mesma maneira que se chega ao conhecimento de um país entrevistando os habitantes de todas as classes e condições sociais, com cada um oferecendo uma informação ou um ensino.

Diz ele sobre isso:

“Cabe ao observador formar o conjunto com a ajuda de documentos recolhidos de diferentes lados, colecionados, coordenados e controlados uns pelos outros. Agi, pois, com os Espíritos, como o teria feito com os homens; foram para mim, desde o menor ao maior, meios de me informar, e não reveladores predestinados.” (1)

A disposição adotada pelo professor Rivail em seus estudos espíritas foi sempre seguir a seguinte regra: observar, comparar e deduzir.

Se até então as sessões na casa do Sr. Baudin não tinham um objetivo determinado, Rivail, pelo seu jeito professoral e questionador, mudou naturalmente essa situação, pois nessas entrevistas com os Espíritos, antesfrívolas, agora se procurava resolver problemas importantes e de grande interesse sob o ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível: ele ia a cada reunião com uma série de perguntas preparadas e metodicamente dispostas, às quais os Espíritos lhe respondiam com precisão, profundidade e lógica. A partir de então, se por algum motivo desse Rivail a faltar em alguma sessão, os participantes ficavam sem saber o que fazer.

A princípio, o professor Rivail só tinha por objetivo instruir-se; contudo, quando percebeu que aquelas informações formavam um conjunto e que tomavam proporções de uma Doutrina, resolveu torná-las públicas para a instrução de todos. Futuramente, essas informações, com questões e respostas, desenvolvidas e completadas, constituiriam a base de O Livro dos Espíritos.

“Tudo foi obtido pela escrita, por intermédio de diversos médiuns.” Os primeiros médiuns que concorreram para a elaboração desse livro foram as Srtas. Baudin, cuja boa vontade jamais lhes faltou: “quase todo o livro foi escrito por intermédio delas em presença de numeroso publico que assistia às sessões com o mais vivo interesse.” (3)

Em 25 de março de 1856, na casa do Sr. Baudin, através da médium Srta. Baudin, teve pela primeira vez contato com o seu guia espiritual. Dias antes ouviu batidas noturnas repetitivas no tabique que separava sua casa, situada à Rua dos Mártires, 8, 2ª andar, do cômodo vizinho. Na sessão daquele dia, então, travou-se a seguinte entrevista:

“– P. ...poderíeis dizer-me a causa dessas pancadas que se fizeram ouvir com tanta persistência (em minha casa)?
– R. Era teu Espírito familiar.

– P. Com que objetivo vinha bater assim?
– R. Queria se comunicar contigo.

– P. Poderíeis dizer-me o que é que ele queria de mim?
– R. Podes perguntar a ele mesmo, porque está aqui.

(...)

P. – Meu Espírito familiar, quem quer que sejais, vos agradeço por terdes ido visitar-me; Poderíeis dizer-me quem sois?
 R. Para ti, me chamarei A Verdade, e todos os meses, aqui, durante um quarto de hora, estarei à tua disposição.

(...)” (1)

Em 17 de junho de 1856, ainda na casa do Sr. Baudin e através da sua filha médium, Rivail pergunta ao Espírito (a Verdade):

“P. – Uma parte da obra já foi revista. Poderíeis ter a bondade de dizer o que dela pensais?
R. – O que foi revisto está bem; mas, quando tudo acabar, será preciso revê-la ainda, a fim de estendê-la sobre certos pontos, e abreviá-la em outros.” (1)

Em 11 de setembro de 1856, também, na casa dos Baudin, depois de haver feito a leitura de alguns capítulos do futuro Livro dos Espíritos, referente às leis morais, a médium Srta. Baudin escreveu espontaneamente:

"Compreendestes bem o objetivo de teu trabalho; o plano está bem concebido; estamos contentes contigo. Continua, mas, sobretudo, quando a obra estiver terminada, lembra-te de que nós te recomendaremos fazê-la imprimir e propagá-la: é de uma utilidade geral. Estamos satisfeitos, e não te deixaremos jamais. Crê em Deus e caminha." Esta mensagem foi assinada assim: “Muitos Espíritos.” (1)

Nesse ano de 1856, Rivail acompanhou também as reuniões espíritas que aconteciam na Rua Tiquetone, na casa do Sr. Roustan; a Srta. Japhet era a médium sonâmbula. Aqui, as reuniões eram sérias e ordeiras. Como o trabalho de Rivail estava quase acabado, pronto para um livro, ele resolveu revê-lo entrevistando outros Espíritos mediante outros médiuns. Inicialmente teve a idéia de fazer objeto de estudo, mas no fim de algumas sessões os Espíritos preferiram vê-lo na intimidade e, para esse efeito,  marcaram certos dias,  em que trabalhariam com a Srta. Japhet, a fim de o fazerem com mais calma, objetivando também evitar indiscrições e comentários prematuros do público. Contudo, Rivail não se contentou com essa verificação que os próprios Espíritos lhe recomendaram.

Assim, Rivail procurou se relacionar com outros médiuns e sempre que surgia uma ocasião, aproveitava para propor algumas das perguntas, principalmente as que lhe pareciam mais espinhosas. Foi assim que, nesse trabalho de revisão, mais de dez médiuns lhe prestaram assistência. Isso aconteceu através da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes refeitas no silêncio da meditação; Assim se formou a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que apareceria para o público a 18 de abril de 1857.

A parte essencial do trabalho de revisão foi feita com o concurso da senhorita Japhet que se prestou, com a maior complacência e o mais completo desinteresse, a todas as exigências dos Espíritos. A Sta. Japhet,  que também era uma sonâmbula muito notável, tinha o tempo da sua vida particular completamente empregado, mas compreendeu a necessidade da utilidade desse trabalho em favor da propagação da Doutrina e dedicou-se de boa vontade a essa tarefa. (3)

Nessa obra Rivail usou o pseudônimo de Allan Kardec, sugerido por um Espírito que se denominava Z (como vimos anteriormente, Zéfiro), que lhe revelou haverem sido amigos vivendo entre os druidas numa vida pretérita, e que seu nome naquela encarnação era Allan Kardec. E com esse pseudônimo assinou todas as suas obras espíritas.

Em janeiro de 1857, quando já havia enviado para a editora imprimir O Livro dos Espíritos, o Espírito Z havia prometido escrever-lhe uma carta por ocasião do Ano Novo. Nesse dia, na casa do Sr. Baudin, Z tinha algo de particular a dizer-lhe. Eis o que escreveu pela médium Srta. Baudin, na intimidade, para o agora Allan Kardec:

“Caro amigo, não quis te escrever, na última terça-feira, diante de todo o mundo, porque há certas coisas que não se podem dizer senão entre nós.

Queria primeiro te falar de tua obra, a que fazes imprimir (O Livro dos Espíritos estava no prelo.) Não te canses tanto noite e dia; terás mais resultado, e a obra não perderá por esperar.

Segundo o que vejo, és muito capaz de levar a bom termo a tua empresa e tens que fazer grandes coisas. Nada, porém, de exagero em coisa alguma. Observa e aprecia tudo judiciosa e friamente. Não te deixes arrastar pelos entusiastas, nem pelos muito apressados. Mede todos os teus passos, a fim de chegares ao fim com segurança. Não creias em mais do que aquilo que vejas; não desvies a atenção de tudo o que te pareça incompreensível; virás a saber a respeito mais do que qualquer outro, porque os assuntos de estudo serão postos sob as tuas vistas.

Mas, ai! a verdade não será ainda conhecida, nem acreditada, por todos, antes de muito tempo! Não verás, nesta existência, senão a aurora do sucesso de tua obra; será necessário que retornes, reencarnado num outro corpo, para completar o que tiveres começado, e, então, terás a satisfação de ver, em plena frutificação, a semente que tiveres difundido sobre a Terra.

Terás invejosos e ciumentos que procurarão te denegrir e contrariar; não te desencorajes; não te inquietes com o que se dirá ou se fará contra ti; prossegue tua obra; trabalha sempre pelo progresso da Humanidade, e serás sustentado pelos bons Espíritos, enquanto perseverares no bom caminho.

Lembra-te de que, há um ano, prometi a minha amizade àqueles que, durante o ano, fossem convenientes em toda a sua conduta? Pois bem! anuncio-te que és um daqueles que escolhi entre todos.

Teu amigo que te ama e te protege, Z.” (1)

Como vimos, Rivail havia dito que Z não era um Espírito superior, mas muito bom e benevolente. Diz Allan Kardec sobre ele: “Talvez fosse mais avançado do que o nome que tomou poderia fazer supor; pode-se supô-lo a julgar pelo caráter sério e a sabedoria de suas comunicações, segundo as circunstâncias. Em favor de seu nome, poderia se permitir uma linguagem familiar, própria ao meio onde se manifestava, e dizer, o que lhe acontecia freqüentemente, duras verdades sob a forma alegórica do epigrama. Seja como for, sempre conservei dele uma boa lembrança e o reconhecimento pelos bons conselhos que me deu e a amizade que me testemunhou. Desapareceu com a dispersão da família Baudin, dizendo que logo deveria reencarnar.” (1)

Em 18 de abril de 1857, na Galeria D'Orleans, local da Livraria Dentu, era lançado ao público a primeira edição de O Livro dos Espíritos. Que trazia em seu frontispício os seguintes dizeres: “O Livro dos Espíritos, contendo os princípios da doutrina espírita acerca da natureza, manifestação e relações dos espíritos com os homens; das leis morais; da vida presente, vida futura e porvir da humanidade. Escrito e publicado conforme o ditado e a ordem de espíritos superiores por Allan Kardec.” (4).
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Escreveu Allan Kardec na Revista Espírita de janeiro de 1858: "...declaramos desde o princípio, e temos a satisfação de reafirmar agora, jamais pensamos em fazer de O Livro dos Espíritos objeto de especulação: Seu produto será aplicado nas coisas de utilidade geral." (3)

Em março de 1860, quando do lançamento da segunda edição, através da Revista Espírita de nº. 3 desse ano, escreveu Allan Kardec sobre esta nova edição:

“Inteiramente refundida e consideravelmente aumentada.

Na primeira edição desta obra, anunciamos uma parte suplementar. Devia compor-se de todas as questões que ali não puderam entrar, ou que circunstâncias ulteriores e novos estudos deveriam originar. Mas como todas se referem a alguma das partes já tratadas, e das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não teria apresentado nenhuma continuidade. Preferimos aguardar a reimpressão do livro para incorporar todo o conjunto, e aproveitamos para dar à distribuição das matérias uma ordem muito mais metódica, suprimindo ao mesmo tempo tudo quanto tivesse duplo sentido. Esta reimpressão pode, pois, ser considerada como obra nova, embora não tenham os princípios sofrido nenhuma alteração, salvo pouquíssimas exceções, que são antes complementos e esclarecimentos do que verdadeiras modificações. Esta conformidade com os princípios emitidos, malgrado a diversidade das fontes em que foram hauridos, é um fato importante para o estabelecimento da ciência espírita. Prova nossa própria correspondência que comunicações em tudo idênticas, se não quanto à forma, ao menos quanto ao fundo, foram obtidas em diferentes localidades, e isso muito antes da publicação do nosso livro, o que veio confirmá-las e dar-lhes um corpo regular. Por seu lado, a História atesta que a maioria desses princípios tem sido professada pelos homens mais eminentes, dos tempos antigos e modernos, assim trazendo a sua sanção.” (5)

Assim temos, resumidamente, a História de O Livro dos Espíritos.

Notas:

(1) Obras Póstumas (1890), 2ª parte.
(2) O Livro dos Médiuns, 2ª parte, Psicografia, item 157.
(3) Revista Espírita, janeiro de 1858, O Livro dos Espíritos.
(4) O Livro dos Espíritos, 1ª edição.
(5) Revista Espírita, março de 1860.

Revista Espírita de nº. 3 desse ano, escreveu Allan Kardec sobre esta nova edição:


“Inteiramente refundida e consideravelmente aumentada.

Na primeira edição desta obra, anunciamos uma parte suplementar. Devia compor-se de todas as questões que ali não puderam entrar, ou que circunstâncias ulteriores e novos estudos deveriam originar. Mas como todas se referem a alguma das partes já tratadas, e das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não teria apresentado nenhuma continuidade. Preferimos aguardar a reimpressão do livro para incorporar todo o conjunto, e aproveitamos para dar à distribuição das matérias uma ordem muito mais metódica, suprimindo ao mesmo tempo tudo quanto tivesse duplo sentido. Esta reimpressão pode, pois, ser considerada como obra nova, embora não tenham os princípios sofrido nenhuma alteração, salvo pouquíssimas exceções, que são antes complementos e esclarecimentos do que verdadeiras modificações. Esta conformidade com os princípios emitidos, malgrado a diversidade das fontes em que foram hauridos, é um fato importante para o estabelecimento da ciência espírita. Prova nossa própria correspondência que comunicações em tudo idênticas, se não quanto à forma, ao menos quanto ao fundo, foram obtidas em diferentes localidades, e isso muito antes da publicação do nosso livro, o que veio confirmá-las e dar-lhes um corpo regular. Por seu lado, a História atesta que a maioria desses princípios tem sido professada pelos homens mais eminentes, dos tempos antigos e modernos, assim trazendo a sua sanção.” (5)

Assim temos, resumidamente, a História de O Livro dos Espíritos.

Notas:

(1) Obras Póstumas (1890), 2ª parte.
(2) O Livro dos Médiuns, 2ª parte, Psicografia, item 157.
(3) Revista Espírita, janeiro de 1858, O Livro dos Espíritos.
(4) O Livro dos Espíritos, 1ª edição.
(5) Revista Espírita, março de 1860.

O Potencial filosófico de “O Livro dos Espíritos” 2013


O Potencial filosófico de “O Livro dos Espíritos”
e seu dinamismo essencial


Jerri Roberto Almeida[i]

“Sua força [do Espiritismo] está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom-senso.”

Allan Kardec

No ano em que O Livro dos Espíritos comemora o seu sesquicentenário, naturalmente, eclodem significativas reflexões sobre o seu conteúdo na cultura contemporânea. Cento e cinqüenta anos podem ser enquadrados, historicamente, num  tempo de curta duração, o que significa que o potencial filosófico dessa Obra, evidentemente, não esgotou o seu dinamismo essencial. Nosso propósito, com esse artigo, é refletirmos sobre o conjunto dessa  Obra Primária do Espiritismo,  em especial, sobre a contribuição de sua filosofia para o homem atual.
O Livro dos Espíritos é a obra fundadora da Doutrina Espírita e, portanto, do que chamamos de “filosofia espírita”. A rigor, nos meios intelectuais continua se negando o caráter filosófico dessa Obra codificada por Kardec. Gonzáles Soriano, em seu ensaio intitulado: “El Espiritismo es la Filosofia”, mesmo sem ser espírita, assevera que o Espiritismo é: “...a síntese essencial dos conhecimentos humanos aplicados à investigação da verdade.”[ii]  Ora, a longa tradição filosófica do Ocidente, buscou na razão as interpretações que se julgavam “lógicas” e “aceitáveis”, para explicar o mundo.
A filosofia, no seu nascedouro, buscou romper com a explicação mitológica da realidade, muito comum nas sociedades agrárias antigas. Embora, ainda hoje, se aceitar a definição de Pitágoras, num sentido mais etimológico, de que a filosofia signifique: “amor à sabedoria”, devemos perceber, num sentido amplo, que o que existe são “filosofias”, ou seja, concepções diferentes sobre a realidade. Nos vinte e cinco séculos de tradição filosófica Ocidental os inúmeros filósofos e suas escolas conceberam filosofias distintas e, muitas, conflitantes.
Quer se afirme que a filosofia seja: um conjunto de saberes, uma visão de mundo ou um modelo explicativo da vida, é importante lembrarmos o pensamento do filósofo Sexto Empírico, do século II-III, ao afirmar que em toda investigação temos três resultados possíveis: acreditamos ter encontrado toda a resposta; acreditamos ser impossível encontrar a resposta, ou continuamos buscando. Para ele, a filosofia deveria repousar nessa última questão, ou seja, de que o conhecimento não é algo pronto, acabado, fechado, mas, sobretudo, progressivo. Nada é sagrado, pois tudo é objeto de crítica e análise.
Allan Kardec, embora não ter sido propriamente um filósofo, teve a grandeza intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita em torno de uma “verdade única” e, filosoficamente, dogmática. Esse é um caráter intrínseco do discurso filosófico: a liberdade de pensamento, aberto à reflexão e ao progresso das idéias. 


Estrutura do pensamento filosófico
O potencial filosófico de O Livro dos Espíritos
Explicação materialista ou idealista da realidade (monismo/dualismo)
Explicação transcendente da realidade (espírito e matéria) – Idealismo espírita
Uso da razão – exercício intelectual
“Nada deve ser aceito sem antes passar pelo crivo da razão”.
Tudo é objeto de crítica: nada é sagrado.
Analisa todas as coisas pertinentes ao mundo físico e ao mundo espiritual.
Trabalha com questões abertas
“Da  liberdade de consciência decorre  o direito de livre-exame...”
Método dialético: interrogação, questionamento, discussão, etc.
Método dialético: diálogos, questionamentos, argumentação, fundamentações, deduções, etc.
Práxis (performances)
“Um fim grande e sublime: o do progresso individual e social.”



O Espiritismo, portanto, na medida em que busca explicar a realidade através da razão e da lógica, utiliza-se de um discurso filosófico. Todavia, a filosofia espírita, inaugurada em O Livro dos Espíritos, não traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos ou significados, Ao contrário, a filosofia espírita, é um saber que se justifica com base nos fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que Kardec não partiu da “crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da mediunidade, para, num segundo momento, enveredar pelos caminhos da interpretação dos fatos, com base no crivo da razão. Disso surgiu a filosofia espírita inserida, inicialmente, em O Livro dos Espíritos.
Para Marcondes: “A contribuição da filosofia tem sido, portanto, desde o seu nascimento na Grécia antiga, a interrogação, o questionamento, a pergunta. Para a filosofia não há nada que não possa ser posto em questão. Deve ser possível discutir tudo.”[iii] Sob esse aspecto, O Livro dos Espíritos, em suas 1019 perguntas ou questionamentos, se afirma no discurso filosófico. Kardec indagou os espíritos sobre um universo de questões que sempre inquietaram o pensamento humano: Deus, a alma, a origem da vida, a morte, os problemas sociais e familiares, a liberdade, o sofrimento, o destino e a felicidade, entre outros.  Dessa forma, a Obra Primeira da Doutrina Espírita avança, no seu modelo explicativo da vida, por onde outras filosofias se calaram, vítimas dos preconceitos ou do orgulho de seus formuladores.
Um estudo atento de O Livro dos Espíritos,  evidencia a busca constante de Kardec, por explicações plausíveis, que possam atender à coerência e ao bom senso. Ele interroga os espíritos com firmeza, cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo tempo – buscando libertar-se de preconceitos e atavismos culturais de sua época, muito embora, seria ingenuidade pensar numa “neutralidade absoluta”.
Há, naturalmente, uma “busca incessante” de conhecimentos e reflexões, iniciadas em O Livro dos Espíritos e que, evidentemente, não pára com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto das Obras Básicas, um dinamismo inesgotável, uma vez que a experiência da evolução espiritual vai oportunizando, ao Ser, uma ampliação de seus horizontes intelectuais.
Portanto, uma vez estabelecida a base estrutural do conhecimento espírita, em 18 de abril de 1857, o seu núcleo passa a ser a análise do homem na condição de espírito imortal e pluriexistencial. Define-se uma ontologia integrando a filosofia espírita no conjunto da tradição filosófica dualista: pitagórica, socrática, platônica, entre outras. Mas o espiritismo vai além do dualismo filosófico, estudando o Ser numa dimensão tríplice: espírito, perispírito e corpo. A partir dessas informações, buscamos aprimorar instrumentos de investigação que nos permitam compreender ou desvendar melhor essa realidade espiritual.
As obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier, em especial as de André Luiz, ofereceram inestimáveis enfoques, descortinando, ainda mais, o conteúdo de O Livro dos Espíritos. Os estudiosos da Doutrina Espírita, utilizando-se dos recursos da hermenêutica, empenham esforços para aproximarem-se, o máximo possível, da essência dos conhecimentos transmitidos pelos espíritos à Kardec. Não se trata de caminharmos pelo território livre da “opinião”, representada nos famosos “achismos”, mas nos referimos à análise responsável, fundamentada e comprometida com a Causa.
Sendo que o conhecimento espírita é dinâmico, ele não foi dado por completo ou “acabado”, cabe ao ser humano, à luz da lei do trabalho[iv], buscar compreendê-lo sem deturpá-lo. Interpretar não significa modificar os seus fundamentos. Na verdade, a “interpretação” é um esforço da inteligência por “encontrar um sentido escondido”, que não está, necessariamente, claro. Ora, em nossa condição de espíritos em evolução, não podemos depreender que já esteja tudo “claro”, em termos de entendimento sobre a vida e seus mecanismos. Logo, a capacidade de interpretação é inerente ao ser humano.
É preciso considerar, também, que O Livro dos Espíritos apresenta dois outros componentes importantes da reflexão filosófica: o diálogo e a dialética. Kardec, em todo o conjunto da Obra, dialoga com os espíritos através de inúmeros médiuns. Esse diálogo é uma relação dialética, de um conhecimento que não é uma simples “revelação” hierarquicamente estabelecida, mas que se opera pela via do debate e da discussão. A partir de uma pergunta, e de sua resposta, surgem outras perguntas e outras respostas que, ao longo do trabalho, são sistematicamente ordenadas.
 Essa relação dialética se processa também, no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo se distancie das leituras simplistas, onde, muitas vezes, se busca afirmar o conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou, por óbvias razões, a dialogar com a fonte das informações, os espíritos, de forma racionalista sem, no entanto, perder o viés dos sentimentos. A racionalidade empregada aos estudos deve servir para que os seus conteúdos nos levem a um encantamento, no bom sentido do termo, pela vida.
Nesse momento, entramos num outro aspecto dessa reflexão que, para alguns poderia parecer óbvio e para outros nem tanto: Qual o dinamismo essencial do conteúdo de O Livro dos Espíritos? O que a sua filosofia nos oferece, além dos referenciais já conhecidos? Kardec afirmou que: “... o estudo do Espiritismo é imenso; interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é um mundo que se abre diante de nós.” [v] Sabidamente, essa Obra Primeira oferece-nos uma cosmovisão da vida e sua significação profunda na ordem do Universo, motivando, a partir disso, uma mudança, no comportamento humano.
Na Introdução de O Livro dos Espíritos, item XVII, Allan Kardec informa sobre o sentido pragmático dessa obra: “Esperamos (...) guiar os homens que desejem esclarecer-se, mostrando-lhes, nestes estudos, um fim grande e sublime: o do progresso individual e social e o de lhes indicar o caminho que conduz a esse fim.”  Entretanto, Kardec advertiu: “Fora presumir demais da natureza humana supor que ela possa transformar-se de súbito, por efeito das idéias espíritas. A ação que estas exercem não é certamente idêntica, nem do mesmo grau em todos os que as professam. Mas o resultado dessa ação, qualquer que seja, ainda que extremamente fraco, representa sempre uma melhora.”[vi]
Karl Marx afirmou, por volta de 1845, que: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se, agora, de transformá-lo.” Doze anos após, com o surgimento de O Livro dos Espíritos, temos a proposta de uma filosofia transformadora e, de certa forma, revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da existência de Deus, do Ser, do destino e da dor. Ao iniciar o seu diálogo com as entidades espirituais, Kardec parte, justamente de Deus: “Inteligência suprema e a Causa primária de todas as coisas.” Ora, esse “ponto de partida” recolocava Deus, novamente, no centro do debate filosófico, não de forma teológica, mas pela força dos argumentos.
Dessa forma, a filosofia espírita estabelece uma reconciliação entre a fé e a razão, entre a religião e a ciência. Um dos grandes problemas intelectuais do século XIX era a validade da fé. Sob essa discussão, Kardec, ao final de um interessante artigo sobre “A Religião e o Progresso”, enfatiza que: “É pela concordância da fé e da razão que diariamente tantos incrédulos são trazidos a Deus.” [vii]
O codificador, ainda referindo-se ao “Espiritismo filosófico”, resume três de seus efeitos: a) desenvolver o sentimento religioso; b) desenvolver a resignação nas vicissitudes da vida; c) estimular no homem a indulgência para com os defeitos alheios. [viii] Bem se percebe, por isso, que o conteúdo de O Livro dos Espíritos não se limita, simplesmente, a produzir um conjunto de reflexões teóricas ou um novo saber. Seu foco é tornar-se uma filosofia prática, capaz de contribuir para uma melhora do espírito humano, individual e coletivamente.
É compreensível que a elucidação dos problemas da existência e da vida, quer seja no âmbito individual ou social, permite ao ser humano aproximar-se melhor de uma compreensão sobre a Justiça Divina e sua Providência. O ateísmo é produto da ignorância em relação a antigas crenças sobre Deus alimentadas, ao longo do tempo, pela imaginação humana. Por isso, o Espiritismo nos convida à “fé raciocinada”, a estudarmos com maior profundidade as Leis Morais que regem e que orientam a nossa evolução espiritual.
Na medida em que passamos a compreender e a correlacionar a: Justiça Divina, a Imortalidade da alma, a reencarnação, o livre-arbítrio e a lei de ação e reação, passamos, naturalmente, a perceber com maior nitidez os mecanismos existenciais, a felicidade e os sofrimentos humanos. No centro desse processo evolutivo está o espírito, ser inteligente da criação que, no corpo ou fora dele, realiza as suas múltiplas experiências de crescimento ético-moral. Deus é amor. Ele não nos perdoa porque não se magoa, nem se melindra.  A divindade não se zanga e nem sente ódio, pois esses são qualificativos humanos. Deus, na sua magnitude, nos “compreende”, oportunizando-nos o exercício pessoal da liberdade associada às Leis Morais.
Compreendendo essas estruturas da vida, o ser humano passa a enfrentar melhor, e mais conscientemente, as vicissitudes, as adversidades, percebendo nelas, de um lado, o reflexo natural daquilo que ele pode estar semeando e, de outro, os desafios evolutivos que lhe cumpre enfrentar. Compreende que esses desafios predispõem, ao indivíduo, o desenvolvimento de forças insuspeitadas, desconhecidas, que nele estavam latentes. Ao mesmo tempo, o conteúdo exarado em O Livro dos Espíritos propõe uma filosofia da convivência pautada, essencialmente, na moral cristã, sob a ótica do Amor. Logo, amar ao próximo é, também, ser indulgente com suas limitações, uma vez que todos vivemos na órbita de nossa incompletude.
Sendo a única obra da codificação totalmente ditada pelos espíritos orientadores, O Livro dos Espíritos inaugurou, sem nenhum ufanismo, uma nova fase do pensamento humano. É, sem dúvida, um novo paradigma do conhecimento, possuindo um sólido alicerce doutrinário, sem se tornar, no entanto, temporalizado, fechado, pois que acompanha o avançar das novas informações e saberes.
Portanto, O Livro dos Espíritos veio para ficar! Todo o seu potencial filosófico, como buscamos refletir até agora, enseja uma revisão do existencialismo e do materialismo. Seus argumentos são intelectualmente bem fundados, e sua essência restaura uma visão otimista da vida, situando-a no contexto da evolução ético-espiritual do homem, ser imortal e pluriexistencial, criado por Deus, para lograr a plenitude.



[i] Autor do livros: Filosofia da Convivência e O Desafio da Felicidade
[ii] Citado por Herculano Pires. Introdução à Filosofia Espírita. 2ª. ed. São Paulo: FEESP, 1993. P. 20.
[iii] MARCONDES, Danilo. Para que serve a filosofia? (Prefácio) In. Café Philo: As grandes indagações da filosofia.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,  1999.
[iv] Kardec nos oferece o seu próprio depoimento: “Eu precisei mais de um ano de trabalho para ficar convencido.” In. O Que é o Espiritismo. 32ª. ed. FEB.  Cap. 1. Pág. 52. .
[v] O Livro dos Espíritos. Introdução, item  XIII.
[vi] Idem. Conclusão, item VII.
[vii] Revista Espírita, julho 1864 (“A Religião e o progresso”)
[viii] O Livro dos Espíritos. Conclusão, item VII.