de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo de quanto
possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se defendeu,
com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência de
idéias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo, observou
os fatos e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o primeiro a
apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um corpo de doutrina,
metódico e regular.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
1º de abril de 1858
Os desertores – Uma análise de Kardec em Obras Póstumas.
Se é certo que todas as grandes idéias contam
apóstolos fervorosos e dedicados, não menos certo é que mesmo as melhores
dentre elas têm seus desertores. O Espiritismo não podia escapar aos efeitos da
fraqueza humana. Ele também teve os seus e a esse respeito não serão inúteis algumas
observações.
Nos primeiros tempos, muitos se equivocaram sobre a natureza
e os fins do Espiritismo e não lhe perceberam o alcance. Antes de tudo mais,
excitou a curiosidade; muitos eram os que não viam nas manifestações espíritas
mais do que simples objeto de diversão; divertiram-se com os Espíritos, enquanto
estes quiseram diverti-los. Constituíam um passatempo, muitas vezes
complementar das reuniões familiares.
Esta maneira por que a princípio a coisa se apresentou
foi uma tática hábil dos Espíritos. Sob a forma de divertimento, a idéia
penetrou por toda parte e semeou germens, sem espavorir as consciências
timoratas. Brincaram com a criança, mas a criança tinha de crescer.
Quando aos Espíritos facetos sucederam os Espíritos sérios,
moralizadores; quando o Espiritismo se tornou ciência, filosofia, as pessoas
superficiais deixaram de achá-lo divertido; para os que se preocupam sobretudo
com a vida material, era um censor
importuno e embaraçoso, pelo que não poucos o puseram de lado. Não há que deplorar
a existência desses desertores, porquanto as criaturas frívolas não passam de
pobres auxiliares, seja no que for. Todavia, essa primeira fase não se pode
considerar tempo perdido.
Graças àquele disfarce, a idéia se popularizou cem
vezes mais do que se houvera, desde o primeiro momento, revestido severa forma,
e daqueles meios levianos e displicentes saíram graves pensadores.
Postos em moda pelo atrativo da curiosidade,
constituindo um engodo, os fenômenos tentaram a cupidez dos que andam à cata do
que surge como novidade, na esperança de encontrar aí uma porta aberta. As
manifestações pareceram coisa maravilhosamente explorável e não faltou quem
pensasse em fazer delas um auxiliar de seus negócios; para outros, eram uma
variante da arte da adivinhação, um processo, talvez mais seguro do que a cartomancia,
a quiromancia, a borra de café, etc., etc., para se conhecer o futuro e
descobrir coisas ocultas, uma vez que, segundo a opinião então corrente, os
Espíritos tudo sabiam.
Vendo, afinal, essas pessoas que a especulação lhes escapava
dentre os dedos e dava em mistificação, que os Espíritos não vinham ajudá-las a
enriquecer, nem lhes indicar números que seriam premiados nas loterias, ou
revelar-lhes a boa sorte, ou levá-las a descobrir tesouros, ou a receber
heranças, nem ainda facultar-lhes uma invenção frutuosa de que tirassem
patente, suprir-lhes em suma a ignorância e dispensá-las do trabalho
intelectual e material, os Espíritos para nada serviam e suas manifestações não
passavam de ilusões. Tanto essas pessoas deferiram louvores ao Espiritismo,
durante todo o tempo em que esperaram auferir dele algum proveito, quanto o
denegriram desde que chegou a decepção. Mais de um dos críticos que o vituperam
tê-lo-iam elevado às nuvens, se ele houvesse feito que descobrissem um tio rico na América, ou que
ganhassem na Bolsa. Das categorias dos desertores, é essa a mais numerosa; mas,
compreende-se que os que a formam não podem ser qualificados de espíritas.
Também essa fase apresentou sua utilidade. Mostrando o
que não se devia esperar do concurso dos Espíritos, ela deu a conhecer o
objetivo sério do Espiritismo e depurou a doutrina. Sabem os Espíritos que as
lições da experiência são as mais proveitosas; se, logo de começo, eles
dissessem: Não peçais isto ou aquilo, porque nada conseguires, ninguém mais
lhes daria crédito. Essa a razão por que deixaram que as coisas tomassem o rumo
que tomaram: foi para que da observação ressaltasse a verdade. As decepções desanimaram
os exploradores e contribuíram para que o número deles diminuísse. Eram
parasitos de que elas, as decepções, livraram o Espiritismo, e não adeptos
sinceros.
Alguns indivíduos, mais perspicazes do que outros,
entreviram o homem na criança que acabava de nascer e temeram-na, como Herodes
temeu o menino Jesus. Não se atrevendo a atacar de frente o Espiritismo, esses
indivíduos incitaram agentes com o encargo de o abraçarem para asfixiá-lo; agentes
que se mascaram para em toda parte se intrometerem, para suscitarem habilmente
a desafeição nos centros e espalharem, dentro destes, com furtiva mão,
o veneno da calúnia, acendendo, ao mesmo tempo, o facho da discórdia,
inspirando atos comprometedores, tentando desencaminhar a doutrina, a fim de
torná-la ridícula ou odiosa e simular em seguida defecções.
Outros ainda são mais habilidosos: pregando a união, semeiam a
separação; destramente levantam questões irritantes e ferinas; despertam o
ciúme da preponderância entre os diferentes grupos; deleitar-se-iam, vendo-os apedrejar-se
e erguer bandeira contra bandeira, a propósito de algumas divergências de
opiniões sobre certas questões de forma ou de fundo, as mais das vezes
provocadas intencionalmente.
Todas as doutrinas têm tido seus Judas; o Espiritismo não
poderia deixar de ter os seus e eles ainda não lhe faltaram.
Esses são espíritas de contrabando, mas que também foram
de alguma utilidade: ensinaram ao verdadeiro espírita a ser prudente,
circunspecto e a não se fiar nas aparências.
Por princípio, deve-se desconfiar dos entusiasmos demasiado
febris: são quase sempre fogo de palha, ou simulacros, ardores ocasionais, que
suprem com a abundância de palavras a falta de atos. A verdadeira convicção é
calma, refletida, motivada; revela-se, como a verdadeira coragem, pelos fatos,
isto é, pela firmeza, pela perseverança e, sobretudo, pela abnegação. O
desinteresse moral e material é a legítima pedra de toque da sinceridade. Tem
esta um cunho sui generis; exterioriza-se por matizes muitas vezes mais fáceis de ser compreendidos do que definidos;
é sentida por efeito dessa transmissão do pensamento, cuja lei o Espiritismo
regulou, sem que a falsidade chegue nunca a simulá-la completamente, visto não
lhe ser possível mudar a natureza das correntes fluídicas que projeta de si.
Ela, a sinceridade, considera erro dar troco à baixa e servil lisonja, que somente
seduz as almas orgulhosas, lisonja por meio da qual precisamente a falsidade se
trai para com as almas elevadas.
Jamais pode o gelo imitar o calor. Se passarmos à
categoria dos espíritas propriamente ditos, ainda aí depararemos com certas
fraquezas humanas, das quais a doutrina não triunfa imediatamente. As mais
difíceis de vencer-se são o egoísmo e o orgulho, as duas paixões originárias do
homem. Entre os adeptos convictos, não há deserções, na lídima acepção do
termo, visto como aquele que desertasse, por motivo de interesse ou qualquer
outro, nunca teria sido sinceramente espírita; pode, entretanto, haver
desfalecimentos. Pode dar-se que a coragem e a perseverança fraqueiem diante de
uma decepção, de uma ambição frustrada,
de uma preeminência não alcançada, de uma ferida no amor-próprio, de uma prova difícil.
Há o recuo ante o sacrifício do bem-estar, ante o receio de comprometer os
interesses materiais, ante o medo do “que dirão?”; há o ser-se abatido por uma
mistificação, tendo como conseqüência, não o afastamento, mas o esfriamento; há
o querer viver para si e não para os outros, o beneficiar-se da crença, mas sob
a condição de que isso nada custe.
Sem dúvida, podem os que assim procedem ser crentes, mas,
sem contestação, crentes egoístas, nos quais a fé não ateou o fogo sagrado do
devotamento e da abnegação; às suas almas custa o desprenderem-se da matéria.
Fazem nominalmente número, porém não há contar com eles.
Todos os outros são espíritas que em verdade merecem esse
qualificativo. Aceitam por si mesmos todas as conseqüências da doutrina e são
reconhecíveis pelos esforços que empregam por melhorar-se. Sem desprezarem,
além dos limites do razoável, os interesses materiais, estes são, para eles, o
acessório e não o principal; não consideram a vida terrena senão como travessia
mais ou menos penosa; estão certos de que do emprego útil ou inútil que lhe
derem depende o futuro; têm por mesquinhos os gozos que ela proporciona, em
face do objetivo esplêndido que entrevem no além; não se intimidam com os
obstáculos com que topem no caminho; vêem nas vicissitudes e decepções provas que não lhes causam desânimo, porque sabem que o repouso
será o prêmio do trabalho. Daí vem que não se verificam entre eles deserções,
nem falências.
Por isso mesmo, os bons Espíritos protegem
manifestamente os que lutam com coragem e perseverança, aqueles cujo
devotamente é sincero e sem idéias preconcebidas; ajudam-nos a vencer os
obstáculos e suavizam as provas que não possam evitar-lhes, ao passo que, não
menos manifestamente, abandonam os que se afastam deles e sacrificam a causa da
verdade às suas ambições pessoais.
Deveremos incluir também entre os desertores do
Espiritismo os que se retiram porque a nossa maneira de ver não lhes satisfaz;
os que, por acharem muito lento ou muito rápido o nosso método, pretendem
alcançar mais depressa e em melhores condições a meta a que visamos?
Certamente que não, se têm por guia a sinceridade e o
desejo de propagar a verdade. — Sim, se seus esforços tendem unicamente a se
porem eles em evidência e a chamar sobre si a atenção pública, para satisfação
do amor-próprio e de interesses pessoais!...
Tendes um modo de ver diferente do nosso, não simpatizais
com os princípios que admitimos! Nada prova que estais mais próximos da verdade
do que nós. Pode-se divergir de opinião em matéria de ciência; investigai do
vosso lado, como nós investigamos do nosso; o futuro dará a ver qual de nós
está em erro ou com a razão. Não pretendemos ser os únicos a reunir as
condições fora das quais não são possíveis estudos sérios e úteis; o que temos
feito podem outros, sem dúvida, fazer. Que os homens inteligentes se agreguem a
nós, ou se congreguem longe de nós, pouco importa!... Se os centros de estudos
se multiplicarem, tanto melhor; será um sinal de incontestável progresso, que aplaudiremos com todas as nossas forças.
Quanto às rivalidades, às tentativas que façam por nos
suplantarem, temos um meio infalível de não as temer.
Trabalhamos para compreender, por enriquecer a nossa
inteligência e o nosso coração; lutamos com os outros, mas lutamos com caridade
e abnegação. O amor do próximo inscrito em nosso estandarte é a nossa divisa; a
pesquisa da verdade, venha donde vier, o nosso único objetivo. Com tais
sentimentos, enfrentamos a zombaria dos nossos adversários e as tentativas dos
nossos competidores. Se nos enganarmos, não teremos o tolo amor-próprio que nos
leve a obstinar-nos em idéias falsas; há, porém, princípios acerca dos quais
podemos todos estar seguros de nos não enganarmos nunca: o amor do bem, a
abnegação, a proscrição de todo sentimento de inveja e de ciúme. Estes
princípios são os nossos; vemos neles os laços que prenderão todos os homens de
bem, qualquer que seja a divergência de suas opiniões. Somente o egoísmo e a
má-fé erguem entre eles barreiras intransponíveis.
Mas, qual será a conseqüência de semelhante estado de coisas?
Indubitavelmente, o proceder dos falsos irmãos poderá de momento acarretar
algumas perturbações parciais, pelo que todos os esforços devem ser empregados
para levá--los ao malogro, tanto quanto possível; essas perturbações, porém, pouco tempo necessariamente durarão e não
poderão ser prejudiciais ao futuro: primeiro, porque são simples manobras de
oposição, fadadas a cair pela força mesma das coisas; depois, digam o que
disserem, ou façam o que fizerem, ninguém seria capaz de privar a doutrina do
seu caráter distintivo, da sua filosofia racional e lógica, da sua moral consoladora
e regeneradora. Hoje, estão lançadas de forma inabalável as bases do
Espiritismo; os livros escritos sem equívoco e postos ao alcance de todas as
inteligências serão sempre a expressão clara e exata do ensino dos Espíritos e
o transmitirão intacto aos que nos sucederem.
Insta não perder de vista que estamos num momento de
transição e que nenhuma transição se opera sem conflito.
Ninguém, pois, deve espantar-se de que certas paixões se
agitem, por efeito de ambições malogradas, de interesses feridos, de pretensões
frustradas. Pouco a pouco, porém, tudo
isso se extingue, a febre se abranda, os homens passam e as novas idéias
permanecem. Espíritas, se quereis ser invencíveis, sede benévolos e caridosos;
o bem é uma couraça contra a qual sempre se quebrarão as manobras da
malevolência!...
Nada, pois, temamos: o futuro nos pertence. Deixemos que
os nossos adversários se debatam, apertados pela verdade que os ofusca;
qualquer oposição é impotente contra a evidência, que inevitavelmente triunfa
pela força mesma das coisas.
É uma questão de tempo a vulgarização universal do
Espiritismo e neste século o tempo marcha a passo de gigante, sob a impulsão do
progresso. (Allan Kardec)
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