sexta-feira, 27 de setembro de 2013

História de uma múmia.

Revista Espírita, novembro de 1862  

Em uma das adegas da torre Saint-Michel, em Bordeaux, vê-se um certo número de cadáveres mumificados que não parecem remontar a mais de dois ou três séculos, e que, sem dúvida, foram levados a esse estado pela natureza do solo. É uma das curiosidades da cidade, e que os estrangeiros não deixam de ir visitar. Todos esses corpos têm a pele completamente pergaminhada;  a maioria está num estado de conservação que permite distinguir os traços do rosto e a expressão da fisionomia; vários têm as unhas de um frescor notável; alguns têm ainda fragmentos das vestes, e mesmo de rendas muito finas.
Entre essas múmias, há uma que fixa particularmente a atenção; é a de um homem cujas contrações do corpo, do rosto e dos braços levados à boca, não deixam nenhuma dúvida sobre o seu gênero de morte; é evidente que foi enterrado vivo, e que morreu nas convulsões de uma agonia terrível.

Um novo jornal de Bordeaux publicou um romance-folhetim sob o título de Mistérios da torre Saint-Michel. Não conhecemos essa obra senão de nome, e pelas grandes imagens em cartazes sobre todas as paredes da cidade e representando a adega da torre.
Consequentemente, não sabemos em que espírito foi concebido, nem a fonte onde o autor hauriu os fatos que conta. O que vamos contar tem pelo menos o mérito de não ser o fruto da imaginação humana, uma vez que vem diretamente de além-túmulo, o que talvez fará muito rir o autor em questão. O que quer que seja, cremos que este relato não é um dos episódios menos impressionantes dos dramas que deveram se passar nesses lugares; será lido com tanto mais interesse por todos os Espíritas, porque encerra em si um grande ensinamento; é a história do homem enterrado vivo e de duas outras pessoas que a ele se ligam, obtido numa série de evocações feitas na Sociedade Espírita de Saint-Jean d'Angély, no mês de agosto último, e que nos foram comunicadas quando de nossa passagem. Pelo que concerne à autenticidade dos fatos, a isso nos referiremos na nota colocada no fim deste artigo.

(Saint-Jean d'Angély, 9 de agosto de 1862. - Médium, Sr. Del.....pela tiptologia.)

1.   Pergunta ao guia protetor: Podemos evocar o Espírito que animou o corpo que se vê na adega da torre Saint-Michel de Bordeaux, e que parece ter sido enterrado vivo? - R. Sim, e que isso sirva para o vosso ensinamento.
2.   Evocação. - (O Espírito manifesta a sua presença.)

3. Poderíeis nos dizer qual foi o vosso nome quando animáveis o corpo de qual falamos? - R - Os mistérios da torre Saint-Michel de Bordeaux.

4. Vossa morte foi uma expiação ou uma prova que havíeis escolhido com o objetivo de vosso adiantamento? - R. Meu Deus, porque, em tua bondade, prossegue a tua justiça sagrada? Sabeis que a expiação é sempre obrigatória, e que aquele que comete um crime não pode evitá-la. Estava eu nesse caso, é tudo vos dizer. Depois de muitos sofrimentos,
cheguei a reconhecer meus erros, e deles senti todo o arrependimento necessário para a minha reentrada em graça diante do Eterno.

5. Podeis nos dizer qual foi o vosso crime? - R. Tinha assassinado minha mulher em seu leito.

(10 de agosto. - Médium, senhora Guérin, pela escrita.)
6. Quando, antes de vossa encarnação, escolhestes vosso gênero de provas, sabíeis que serieis enterrado vivo? - Não; sabia somente que deveria cometer um crime odioso que encheria minha vida de remorsos cruciantes, e que essa vida, eu a acabaria em dores atrozes. Vou ser logo reencarnado; Deus tomou em piedade minha dor e meu arrependimento.
Nota. Esta frase: Sabia que deveria cometer um crime, está explicada adiante, perguntas 30 e 31.

7. A justiça perseguiu alguém por ocasião da morte de vossa mulher? - R. Não; acreditaram numa morte súbita; eu a havia sufocado.

8. Que motivo vos levou a esse ato criminoso? - R. O ciúme.
9. Foi por descuido que vos enterraram vivo? - R. Sim.

10. Lembrai-vos dos instantes de vossa morte? - R. É alguma coisa de terrível, impossível de descrever. Figurai-vos estar numa fossa com dez pés de terra sobre vós, querer respirar e faltar ar, querer gritar: "Estou vivo!" e sentir sua voz abafada; ver-se morrer e não poder chamar por socorro; sentir-se cheio de vida e riscado da lista dos vivos; ter sede e não poder se dessedentar; sentir as dores da fome e não poder fazê-la cessar; morrer, numa palavra, numa raiva de condenado.

11. Nesse momento supremo, pensastes que era o momento de vossa punição? - R. Não pensei em nada; morri como um enraivecido, ferindo-me nas paredes de meu caixão mortuário, querendo dele sair vivo a todo preço.
Nota. Esta resposta é lógica e se acha justificada pelas contorções na quais se vê, examinando o cadáver, que o indivíduo deve ter morrido.

12. Vosso Espírito liberto reviu o corpo de Guillaume Remone? - R. Logo depois de minha morte, eu me via ainda na terra.

13. Quanto tempo ficastes nesse estado, quer dizer, tendo o vosso Espírito ligado ao corpo embora não o animasse mais? - R. Em torno de quinze a dezoito dias.

14. Quando pudestes deixar vosso corpo, onde vos encontrastes? - R. Vi-me cercado de uma multidão de Espíritos como eu cheios de dor, não ousando elevar para Deus seu coração preso à Terra, e desesperançado de receber seu perdão.

Nota. O Espírito ligado ao seu corpo e sofrendo ainda as torturas dos últimos instantes, pois se achando no meio de Espíritos sofredores, desesperançosos de seu perdão não é o inferno com seus prantos e seu ranger de dentes? É necessário fazer dele uma fornalha com as chamas e as forcas? Essa crença na perpetuidade dos sofrimentos é, como se sabe, um dos castigos infligidos aos Espíritos culpados. Esse estado dura tanto quanto o Espírito não se arrepende, e durará sempre se não se arrepende jamais, porque Deus não perdoa senão ao pecador arrependido. Desde que o arrependimento entre em seu coração, um raio de esperança lhe faz entrever a possibilidade de um fim para os seus males; mas só o arrependimento não basta; Deus quer a expiação e a reparação, e é pelas reencarnações sucessivas que Deus dá aos Espíritos imperfeitos a possibilidade de se melhorarem. Na erraticidade eles tomam resoluções que procuram executar em sua vida corporal; é assim que, a cada existência, deixando alguma impureza, chegam gradualmente a se aperfeiçoarem, e dão um passo adiante para a felicidade eterna. A porta da felicidade, portanto, jamais lhes é fechada, mas a alcançam num tempo mais ou menos longo, segundo a sua vontade e o trabalho que fazem, sobre si mesmos, para merecê-lo.
Não se pode admitir a onipotência de Deus sem a presciência; desde então, pergunta-se por que Deus, criando uma alma, sabendo que ela deverá falir sem poder se levantar, a tirou do nada para votá-la aos tormentos eternos? Quis, pois, criar almas infelizes? Esta proposição é insustentável com a ideia da bondade infinita, que é um dos seus atributos essenciais. De duas coisas uma, ou ele sabia, ou não o sabia; se não sabia não é todo poderoso; se o sabia, não é nem justo e nem bom; ora, tirar uma parcela do infinito dos atributos de Deus, é negar a Divindade. Tudo se concilia, ao contrário, com a possibilidade deixada ao Espírito de reparar suas faltas. Deus sabia que, em virtude de seu livre arbítrio, o Espírito faliria, mas sabia também que se reabilitaria; sabia que tomando o mau caminho retardaria sua chegada ao objetivo, mas que chegaria cedo ou tarde, e é para fazê-lo chegar mais depressa que multiplica as advertências sobre seu caminho; se não as escuta, não é senão mais culpável, e merece a prolongamento de suas provas. Dessas duas doutrinas, qual é a mais racional? A.K.

Importante: sugerimos aos leitores pesquisarem na Revista Espírita novembro 1862 a continuidade deste trabalho de pesquisa de Allan Kardec sobre este fato.