Em uma das
adegas da torre Saint-Michel, em Bordeaux, vê-se um certo número de cadáveres
mumificados que não parecem remontar a mais de dois ou três séculos, e que, sem
dúvida, foram levados a esse estado pela natureza do solo. É uma das
curiosidades da cidade, e que os estrangeiros não deixam de ir visitar. Todos
esses corpos têm a pele completamente pergaminhada; a maioria está num estado de conservação que
permite distinguir os traços do rosto e a expressão da fisionomia; vários têm
as unhas de um frescor notável; alguns têm ainda fragmentos das vestes, e mesmo
de rendas muito finas.
Entre essas
múmias, há uma que fixa particularmente a atenção; é a de um homem cujas contrações
do corpo, do rosto e dos braços levados à boca, não deixam nenhuma dúvida sobre
o seu gênero de morte; é evidente que foi enterrado vivo, e que morreu nas convulsões
de uma agonia terrível.
Um novo
jornal de Bordeaux publicou um romance-folhetim sob o título de Mistérios da
torre Saint-Michel. Não conhecemos essa obra senão de nome, e pelas grandes
imagens em cartazes sobre todas as paredes da cidade e representando a adega da
torre.
Consequentemente,
não sabemos em que espírito foi concebido, nem a fonte onde o autor hauriu os
fatos que conta. O que vamos contar tem pelo menos o mérito de não ser o fruto da
imaginação humana, uma vez que vem diretamente de além-túmulo, o que talvez
fará muito rir o autor em questão. O que quer que seja, cremos que este relato
não é um dos episódios menos impressionantes dos dramas que deveram se passar
nesses lugares; será lido com tanto mais interesse por todos os Espíritas,
porque encerra em si um grande ensinamento; é a história do homem enterrado
vivo e de duas outras pessoas que a ele se ligam, obtido numa série de
evocações feitas na Sociedade Espírita de Saint-Jean d'Angély, no mês de agosto
último, e que nos foram comunicadas quando de nossa passagem. Pelo que concerne
à autenticidade dos fatos, a isso nos referiremos na nota colocada no fim deste
artigo.
(Saint-Jean d'Angély, 9 de agosto de
1862. - Médium, Sr. Del.....pela tiptologia.)
1.
Pergunta ao guia protetor: Podemos evocar o Espírito que
animou o corpo que se vê na adega da torre Saint-Michel de Bordeaux, e que
parece ter sido enterrado vivo? - R. Sim, e que isso sirva para o vosso
ensinamento.
2.
Evocação. - (O Espírito manifesta a sua presença.)
3. Poderíeis
nos dizer qual foi o vosso nome quando animáveis o corpo de qual falamos? - R -
Os mistérios
da torre Saint-Michel de Bordeaux.
4. Vossa morte foi uma
expiação ou uma prova que havíeis escolhido com o objetivo de vosso
adiantamento? - R. Meu Deus, porque, em tua bondade, prossegue a tua justiça sagrada?
Sabeis que a expiação é sempre obrigatória, e que aquele que comete um crime não
pode evitá-la. Estava eu nesse caso, é tudo vos dizer. Depois de muitos
sofrimentos,
cheguei a reconhecer meus
erros, e deles senti todo o arrependimento necessário para a minha reentrada em
graça diante do Eterno.
5. Podeis nos dizer qual
foi o vosso crime? - R. Tinha assassinado minha mulher em seu leito.
(10 de agosto. - Médium, senhora Guérin, pela escrita.)
6. Quando, antes de vossa
encarnação, escolhestes vosso gênero de provas, sabíeis que serieis enterrado
vivo? - Não; sabia somente que deveria cometer um crime odioso que encheria
minha vida de remorsos cruciantes, e que essa vida, eu a acabaria em dores atrozes.
Vou ser logo reencarnado; Deus tomou em piedade minha dor e meu arrependimento.
Nota. Esta frase: Sabia que
deveria cometer um crime, está explicada adiante, perguntas 30 e 31.
7. A justiça perseguiu
alguém por ocasião da morte de vossa mulher? - R. Não; acreditaram numa morte
súbita; eu a havia sufocado.
8. Que motivo vos levou a
esse ato criminoso? - R. O ciúme.
9. Foi por descuido que
vos enterraram vivo? - R. Sim.
10. Lembrai-vos dos
instantes de vossa morte? - R. É alguma coisa de terrível, impossível de
descrever. Figurai-vos estar numa fossa com dez pés de terra sobre vós, querer
respirar e faltar ar, querer gritar: "Estou vivo!" e sentir sua voz
abafada; ver-se morrer e não poder chamar por socorro; sentir-se cheio de vida e
riscado da lista dos vivos; ter sede e não poder se dessedentar; sentir as
dores da fome e não poder fazê-la cessar; morrer, numa palavra, numa raiva de
condenado.
11. Nesse momento
supremo, pensastes que era o momento de vossa punição? - R. Não pensei em nada;
morri como um enraivecido, ferindo-me nas paredes de meu caixão mortuário,
querendo dele sair vivo a todo preço.
Nota. Esta resposta é lógica e
se acha justificada pelas contorções na quais se vê, examinando o cadáver, que
o indivíduo deve ter morrido.
12. Vosso Espírito
liberto reviu o corpo de Guillaume Remone? - R. Logo depois de minha morte, eu
me via ainda na terra.
13. Quanto tempo ficastes
nesse estado, quer dizer, tendo o vosso Espírito ligado ao corpo embora não o
animasse mais? - R. Em torno de quinze a dezoito dias.
14. Quando pudestes
deixar vosso corpo, onde vos encontrastes? - R. Vi-me cercado de uma multidão
de Espíritos como eu cheios de dor, não ousando elevar para Deus seu coração preso à Terra, e desesperançado de receber
seu perdão.
Nota. O Espírito ligado ao seu
corpo e sofrendo ainda as torturas dos últimos instantes, pois se achando no
meio de Espíritos sofredores, desesperançosos de seu perdão não é o inferno com
seus prantos e seu ranger de dentes? É necessário fazer dele uma fornalha com as
chamas e as forcas? Essa crença na perpetuidade dos sofrimentos é, como se
sabe, um dos castigos infligidos aos Espíritos culpados. Esse estado dura tanto
quanto o Espírito não se arrepende, e durará sempre se não se arrepende jamais,
porque Deus não perdoa senão ao pecador arrependido. Desde que o arrependimento
entre em seu coração, um raio de esperança lhe faz entrever a possibilidade de
um fim para os seus males; mas só o arrependimento não basta; Deus quer a
expiação e a reparação, e é pelas reencarnações sucessivas que Deus dá aos
Espíritos imperfeitos a possibilidade de se melhorarem. Na erraticidade eles
tomam resoluções que procuram executar em sua vida corporal; é assim que, a
cada existência, deixando alguma impureza, chegam gradualmente a se aperfeiçoarem,
e dão um passo adiante para a felicidade eterna. A porta da felicidade, portanto,
jamais lhes é fechada, mas a alcançam num tempo mais ou menos longo, segundo a
sua vontade e o trabalho que fazem, sobre si mesmos, para merecê-lo.
Não se pode admitir a
onipotência de Deus sem a presciência; desde então, pergunta-se por que Deus,
criando uma alma, sabendo que ela deverá falir sem poder se levantar, a tirou
do nada para votá-la aos tormentos eternos? Quis, pois, criar almas infelizes?
Esta proposição é insustentável com a ideia da bondade infinita, que é um
dos seus atributos essenciais. De duas
coisas uma, ou ele sabia, ou não o sabia; se não sabia não é todo poderoso; se
o sabia, não é nem justo e nem bom; ora, tirar uma parcela do infinito dos atributos
de Deus, é negar a Divindade. Tudo se concilia, ao contrário, com a
possibilidade deixada ao Espírito de reparar suas faltas. Deus sabia que, em
virtude de seu livre arbítrio, o Espírito faliria, mas sabia também que se
reabilitaria; sabia que tomando o mau caminho retardaria sua chegada ao
objetivo, mas que chegaria cedo ou tarde, e é para fazê-lo chegar mais depressa
que multiplica as advertências sobre seu caminho; se não as escuta, não é senão
mais culpável, e merece a prolongamento de suas provas. Dessas duas doutrinas,
qual é a mais racional? A.K.
Importante: sugerimos aos leitores pesquisarem na Revista Espírita novembro 1862 a continuidade deste trabalho de pesquisa de Allan Kardec sobre este fato.