segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Flammarion: Questões Religiosas e o Discurso no Túmulo de Kardec



Durante seus estudos clássicos, Flammarion foi introduzido ao pensamento cristão, sob a ótica do Catolicismo. Em suas memórias ele indica as reservas que foi fazendo aos dogmas da Igreja. Servindo-se da razão, ele questiona o pecado original, o mito de Adão, a idéia de redenção e a descendência davídica de Jesus ante o episódio da concepção. Com este espírito crítico, ele não poderia seguir a carreira eclesiástica, como desejava sua mãe, sem graves conflitos.
A posição que Flammarion guardou, com relação às idéias religiosas, para o resto da vida, foi de reserva. Quanto ao Catolicismo, ele rejeitava o posicionamento teológico dogmático, mas reconhecia um valor afetivo e moral, bem como o papel da filantropia para a sociedade.
As idéias positivistas, especialmente as referentes ao conceito e papel da ciência no conhecimento, marcaram seu espírito. O empirismo de braços dados com a razão, a construção das teorias a partir da observação dos fatos, o questionamento de qualquer sistema calcado em postulados apriorísticos e o uso da matemática na análise dos fenômenos são uma constante na construção do seu pensamento, seja nas pesquisas astronômicas, seja nas pesquisas psíquicas.
Com estas "marcas", Flammarion adotou uma postura reservada na análise dos fenômenos espíritas.
Quando proferiu seu discurso no túmulo de Kardec, ele reconheceu o trabalho do codificador, considera-o "o bom-senso encarnado", mas propôs-se a desenvolver o aspecto científico do Espiritismo.

"Conforme o seu próprio organizador previu, esse estudo, que foi lento e difícil, tem que entrar agora num período científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais a princípio não se insistia, hão de tornar-se objeto da crítica experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as maravilhas da eletricidade e do vapor. (...) Porque, meus Senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o a, b, c. Passou o tempo dos dogmas." (FLAMMARION, 1869)

Uma curiosidade que encontramos na Revista Espírita foi que o discurso impresso nas Obras Póstumas e no volume de 1869 traduzido por Júlio Abreu Filho é apenas um excerto do discurso original, que teria sido publicado em forma de uma brochura de 24 páginas.
Na suas memórias Flammarion afirma ter sido convidado a presidir a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, mas tê-lo declinado. Ele se explica da seguinte forma:

"O comitê me ofereceu suceder a Allan Kardec como presidente da Sociedade Espírita. Eu recusei, dizendo que nove décimos dos seus discípulos continuariam a ver, durante muito tempo ainda, uma religião mais que uma ciência, e que a identidade dos "espíritos" estava longe ainda de ser provada." (FLAMMARION, 1911. p. 498)

Esta citação, mas principalmente a que é transcrita abaixo, mostram como se discutia o caráter religioso do Espiritismo à época de Kardec. Neste primeiro momento Flammarion usa do termo religião para caracterizar "crença", com um tom crítico devido ao tema isolado da identificação dos espíritos. Entretanto, havia uma pretensão de se constituir uma religião a partir de conhecimentos demonstrados pela ciência. Kardec rejeitava a idéia de culto organizado, hierarquias, etc. comumente atreladas ao conceito de religião. Mas, possivelmente, compartilharia com Flammarion a idéia abaixo:

"A existência do Espírito na Natureza, nas leis do cosmos, no homem, nos animais, nas plantas é manifesta. Ela deve bastar para estabelecer a religião natural. E tal religião será incomparavelmente mais sólida que todas as formas dogmáticas. Os princípios da justiça se impõem com a mesma autoridade, e Confucius, assim como Platão e Marco Aurélio, antecipam a base desta religião." (FLAMMARION, 1911. p. 99)



Finalizando:

Dos colaboradores de Kardec, Camille Flammarion foi o que mais valorizou a construção do conhecimento espírita a partir da metodologia empírica e positivista. Como conseqüência desta sua postura ele passou anos de sua vida buscando fatos, sobre os quais construiu a convicção na imortalidade da alma, na comunicabilidade dos espíritos e na existência de faculdades extra-sensoriais nos homens, o que frutificou-se na Metapsíquica de Richet e posteriormente na Parapsicologia de Rhine.
Esta sua visão de ciência e as suspeitas que passou a ter para com os aspectos filosóficos e religiosos do Espiritismo não o tornaram, contudo, um iconoclasta, aos moldes de alguns críticos contemporâneos do aspecto religioso do Espiritismo. Suspeitando do método de Kardec, Flammarion lançou-se ao estudo continuado da fenomenologia espírita, oferecendo-nos, quando desencarnou, uma obra que tornou mais sólidas as bases científicas da doutrina espírita. Quem sabe estes últimos não possam ter suas idéias arejadas pelo pioneirismo do astrônomo francês e redirecionar suas ações em uma cruzada de construção e consolidação.
Crítico dos sistemas religiosos e das verdades misteriosas bastante difundidos em sua época, Flammarion se rendia ao espírito religioso e à construção de uma religião natural, sem dogmas, sem mistérios e sem sobrenatural, como o pensava Allan Kardec.
A obra espírita de Flammarion sustentou e alimentou diversas gerações de espíritas em nosso país, foi uma fonte importante nas discussões que o movimento espírita brasileiro teve de sustentar com diversos segmentos científicos e políticos de nossa sociedade para manter o direito constitucional de existir.

É fundamental que a geração nova, que vem adquirindo as bases do conhecimento espírita nas muitas mocidades e juventudes de nosso país, assim como aos muitos grupos e reuniões de estudo sistematizado do Espiritismo que não olvidasse a obra deste cientista espírita.
Saudamos com estas poucas linhas a memória e a obra do mais polêmico dos espíritas franceses contemporâneos de Kardec.

Desencarne:

Camille Flammarion partiu da vida para a história nos braços da esposa Gabrielle, na Biblioteca do Observatório na tarde do dia 3 de junho de 1925.

Na manhã ensolarada desse dia, com a esposa a visitar os jardins do Observatório, onde a vida irradiava nas flores e nos cantos dos pássaros, disse: "Que mistério é a vida, que mistério é a morte..."

Flammarion foi enterrado nos jardins do Observatório de Juvisy.

Todos os anos na data do seu desencarne, membros da Sociedade Astronômica da França reúnem-se à volta de seu túmulo para reverenciar sua memória e os ensinamentos legados a todos os que cultuam a ciência do céu. Flammarion é sem dúvida alguma o astrônomo que mais despertou mentalidades voltadas a Astronomia.

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