
O Potencial filosófico de “O Livro dos
Espíritos”
e seu dinamismo essencial
Jerri
Roberto Almeida[i]
“Sua força [do Espiritismo]
está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom-senso.”
Allan Kardec
No ano em que O
Livro dos Espíritos comemora o seu sesquicentenário,
naturalmente, eclodem significativas reflexões sobre o seu conteúdo na cultura
contemporânea. Cento e cinqüenta anos podem ser enquadrados, historicamente, num
tempo de curta duração, o que significa que
o potencial filosófico dessa Obra, evidentemente, não esgotou o seu dinamismo
essencial. Nosso propósito, com esse artigo, é refletirmos sobre o conjunto
dessa Obra Primária do Espiritismo, em especial, sobre a contribuição de sua
filosofia para o homem atual.
O Livro dos Espíritos é a obra fundadora da Doutrina
Espírita e, portanto, do que chamamos de “filosofia espírita”. A rigor, nos
meios intelectuais continua se negando o caráter filosófico dessa Obra codificada
por Kardec. Gonzáles Soriano, em seu ensaio intitulado: “El Espiritismo es la Filosofia ”, mesmo sem
ser espírita, assevera que o Espiritismo é: “...a síntese essencial dos
conhecimentos humanos aplicados à investigação da verdade.”[ii] Ora, a longa tradição filosófica do Ocidente,
buscou na razão as interpretações que se julgavam “lógicas” e “aceitáveis”,
para explicar o mundo.
A filosofia, no seu nascedouro, buscou romper com a
explicação mitológica da realidade, muito comum nas sociedades agrárias
antigas. Embora, ainda hoje, se aceitar a definição de Pitágoras, num sentido
mais etimológico, de que a filosofia signifique: “amor à sabedoria”, devemos
perceber, num sentido amplo, que o que existe são “filosofias”, ou seja,
concepções diferentes sobre a realidade. Nos vinte e cinco séculos de tradição
filosófica Ocidental os inúmeros filósofos e suas escolas conceberam filosofias
distintas e, muitas, conflitantes.
Quer se afirme que a filosofia seja: um conjunto de
saberes, uma visão de mundo ou um modelo explicativo da vida, é importante
lembrarmos o pensamento do filósofo Sexto Empírico, do século II-III, ao
afirmar que em toda investigação temos três resultados possíveis: acreditamos
ter encontrado toda a resposta; acreditamos ser impossível encontrar a resposta,
ou continuamos buscando. Para ele, a filosofia deveria repousar nessa última
questão, ou seja, de que o conhecimento não é algo pronto, acabado, fechado,
mas, sobretudo, progressivo. Nada é sagrado, pois tudo é objeto de crítica e
análise.
Allan Kardec, embora não ter sido propriamente um
filósofo, teve a grandeza intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita
em torno de uma “verdade única” e, filosoficamente, dogmática. Esse é um
caráter intrínseco do discurso filosófico: a liberdade de pensamento, aberto à
reflexão e ao progresso das idéias.
Estrutura do pensamento filosófico
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O potencial filosófico de O Livro dos Espíritos
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Explicação materialista ou idealista da realidade
(monismo/dualismo)
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Explicação transcendente da realidade (espírito e
matéria) – Idealismo espírita
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Uso da razão – exercício intelectual
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“Nada deve ser aceito sem antes passar pelo crivo da
razão”.
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Tudo é objeto de crítica: nada é sagrado.
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Analisa todas as coisas pertinentes ao mundo físico
e ao mundo espiritual.
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Trabalha com questões abertas
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“Da liberdade
de consciência decorre o direito de
livre-exame...”
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Método dialético: interrogação, questionamento,
discussão, etc.
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Método dialético: diálogos, questionamentos,
argumentação, fundamentações, deduções, etc.
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Práxis (performances)
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“Um fim grande e sublime: o do progresso individual
e social.”
|
O Espiritismo, portanto, na medida em que busca
explicar a realidade através da razão e da lógica, utiliza-se de um discurso
filosófico. Todavia, a filosofia espírita, inaugurada em O Livro dos Espíritos, não
traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos ou significados, Ao
contrário, a filosofia espírita, é um saber que se justifica com base nos
fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que Kardec não partiu da
“crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da mediunidade, para, num
segundo momento, enveredar pelos caminhos da interpretação dos fatos, com base
no crivo da razão. Disso surgiu a filosofia espírita inserida, inicialmente, em O Livro dos Espíritos.
Para Marcondes: “A contribuição da filosofia tem sido,
portanto, desde o seu nascimento na Grécia antiga, a interrogação, o
questionamento, a pergunta. Para a filosofia não há nada que não possa ser
posto em questão. Deve
ser possível discutir tudo.”[iii] Sob
esse aspecto, O Livro dos Espíritos, em suas 1019 perguntas ou questionamentos,
se afirma no discurso filosófico. Kardec indagou os espíritos sobre um universo
de questões que sempre inquietaram o pensamento humano: Deus, a alma, a origem
da vida, a morte, os problemas sociais e familiares, a liberdade, o sofrimento,
o destino e a felicidade, entre outros. Dessa
forma, a Obra Primeira da Doutrina Espírita avança, no seu modelo explicativo
da vida, por onde outras filosofias se calaram, vítimas dos preconceitos ou do
orgulho de seus formuladores.
Um estudo atento de O Livro dos Espíritos, evidencia a busca constante de Kardec, por
explicações plausíveis, que possam atender à coerência e ao bom senso. Ele
interroga os espíritos com firmeza, cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo
tempo – buscando libertar-se de preconceitos e atavismos culturais de sua época,
muito embora, seria ingenuidade pensar numa “neutralidade absoluta”.
Há, naturalmente, uma “busca incessante” de
conhecimentos e reflexões, iniciadas em O Livro dos Espíritos e que, evidentemente, não pára
com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece,
ao conjunto das Obras Básicas, um dinamismo inesgotável, uma vez que a
experiência da evolução espiritual vai oportunizando, ao Ser, uma ampliação de
seus horizontes intelectuais.
Portanto, uma vez estabelecida a base estrutural do
conhecimento espírita, em 18 de abril de 1857, o seu núcleo passa a ser a
análise do homem na condição de espírito imortal e pluriexistencial. Define-se
uma ontologia integrando a filosofia espírita no conjunto da tradição
filosófica dualista: pitagórica, socrática, platônica, entre outras. Mas o
espiritismo vai além do dualismo filosófico, estudando o Ser numa dimensão
tríplice: espírito, perispírito e corpo. A partir dessas informações, buscamos aprimorar
instrumentos de investigação que nos permitam compreender ou desvendar melhor
essa realidade espiritual.
As obras psicografadas por Francisco Cândido Xavier, em
especial as de André Luiz, ofereceram inestimáveis enfoques, descortinando, ainda
mais, o conteúdo de O Livro dos Espíritos. Os estudiosos da Doutrina Espírita,
utilizando-se dos recursos da hermenêutica, empenham esforços para
aproximarem-se, o máximo possível, da essência dos conhecimentos transmitidos
pelos espíritos à Kardec. Não se trata de caminharmos pelo território livre da
“opinião”, representada nos famosos “achismos”, mas nos referimos à análise
responsável, fundamentada e comprometida com a Causa.
Sendo que o conhecimento espírita é dinâmico, ele não
foi dado por completo ou “acabado”, cabe ao ser humano, à luz da lei do trabalho[iv],
buscar compreendê-lo sem deturpá-lo. Interpretar não significa modificar os
seus fundamentos. Na verdade, a “interpretação” é um esforço da inteligência
por “encontrar um sentido escondido”, que não está, necessariamente, claro.
Ora, em nossa condição de espíritos em evolução, não podemos depreender que já
esteja tudo “claro”, em termos de entendimento sobre a vida e seus mecanismos.
Logo, a capacidade de interpretação é inerente ao ser humano.
É preciso considerar, também, que O Livro dos Espíritos
apresenta dois outros componentes importantes da reflexão filosófica: o diálogo
e a dialética. Kardec, em todo o conjunto da Obra, dialoga com os espíritos
através de inúmeros médiuns. Esse diálogo é uma relação dialética, de um
conhecimento que não é uma simples “revelação” hierarquicamente estabelecida, mas
que se opera pela via do debate e da discussão. A partir de uma pergunta, e de
sua resposta, surgem outras perguntas e outras respostas que, ao longo do
trabalho, são sistematicamente ordenadas.
Essa relação
dialética se processa também, no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é
preciso que esse diálogo se distancie das leituras simplistas, onde, muitas
vezes, se busca afirmar o conteúdo doutrinário através de posturas acríticas,
influenciadas pela teologia tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos
ensinou, por óbvias razões, a dialogar com a fonte das informações, os
espíritos, de forma racionalista sem, no entanto, perder o viés dos
sentimentos. A racionalidade empregada aos estudos deve servir para que os seus
conteúdos nos levem a um encantamento, no bom sentido do termo, pela vida.
Nesse momento, entramos num outro aspecto dessa
reflexão que, para alguns poderia parecer óbvio e para outros nem tanto: Qual o
dinamismo essencial do conteúdo de O Livro dos Espíritos? O que a sua filosofia
nos oferece, além dos referenciais já conhecidos? Kardec afirmou que: “... o
estudo do Espiritismo é imenso; interessa a todas as questões da metafísica e
da ordem social; é um mundo que se abre diante de nós.” [v] Sabidamente,
essa Obra Primeira oferece-nos uma cosmovisão da vida e sua significação
profunda na ordem do Universo, motivando, a partir disso, uma mudança, no
comportamento humano.
Na Introdução de O Livro dos Espíritos, item XVII,
Allan Kardec informa sobre o sentido pragmático dessa obra: “Esperamos (...)
guiar os homens que desejem esclarecer-se, mostrando-lhes, nestes estudos, um
fim grande e sublime: o do progresso individual e social e o de lhes indicar o
caminho que conduz a esse fim.”
Entretanto, Kardec advertiu: “Fora presumir demais da natureza humana
supor que ela possa transformar-se de súbito, por efeito das idéias espíritas.
A ação que estas exercem não é certamente idêntica, nem do mesmo grau em todos
os que as professam. Mas o resultado dessa ação, qualquer que seja, ainda que
extremamente fraco, representa sempre uma melhora.”[vi]
Karl Marx afirmou, por volta de 1845, que: “Os
filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diferentes maneiras; trata-se,
agora, de transformá-lo.” Doze anos após, com o surgimento de O Livro dos
Espíritos, temos a proposta de uma filosofia transformadora e, de certa forma,
revolucionária, ao propor uma nova reflexão sobre os fundamentos da existência
de Deus, do Ser, do destino e da dor. Ao iniciar o seu diálogo com as entidades
espirituais, Kardec parte, justamente de Deus: “Inteligência suprema e a Causa
primária de todas as coisas.” Ora, esse “ponto de partida” recolocava Deus,
novamente, no centro do debate filosófico, não de forma teológica, mas pela
força dos argumentos.
Dessa forma, a filosofia espírita estabelece uma
reconciliação entre a fé e a razão, entre a religião e a ciência. Um dos
grandes problemas intelectuais do século XIX era a validade da fé. Sob essa
discussão, Kardec, ao final de um interessante artigo sobre “A Religião e o
Progresso”, enfatiza que: “É pela concordância da fé e da razão que diariamente
tantos incrédulos são trazidos a Deus.” [vii]
O codificador, ainda referindo-se ao “Espiritismo
filosófico”, resume três de seus efeitos: a) desenvolver o sentimento
religioso; b) desenvolver a resignação nas vicissitudes da vida; c) estimular
no homem a indulgência para com os defeitos alheios. [viii]
Bem se percebe, por isso, que o conteúdo de O Livro dos Espíritos não se
limita, simplesmente, a produzir um conjunto de reflexões teóricas ou um novo
saber. Seu foco é tornar-se uma filosofia prática, capaz de contribuir para uma
melhora do espírito humano, individual e coletivamente.
É compreensível que a elucidação dos problemas da
existência e da vida, quer seja no âmbito individual ou social, permite ao ser
humano aproximar-se melhor de uma compreensão sobre a Justiça Divina e sua
Providência. O ateísmo é produto da ignorância em relação a antigas crenças
sobre Deus alimentadas, ao longo do tempo, pela imaginação humana. Por isso, o
Espiritismo nos convida à “fé raciocinada”, a estudarmos com maior profundidade
as Leis Morais que regem e que orientam a nossa evolução espiritual.
Na medida em que passamos a compreender e a
correlacionar a: Justiça Divina, a Imortalidade da alma, a reencarnação, o
livre-arbítrio e a lei de ação e reação, passamos, naturalmente, a perceber com
maior nitidez os mecanismos existenciais, a felicidade e os sofrimentos
humanos. No centro desse processo evolutivo está o espírito, ser inteligente da
criação que, no corpo ou fora dele, realiza as suas múltiplas experiências de
crescimento ético-moral. Deus é amor. Ele não nos perdoa porque não se magoa,
nem se melindra. A divindade não se
zanga e nem sente ódio, pois esses são qualificativos humanos. Deus, na sua
magnitude, nos “compreende”, oportunizando-nos o exercício pessoal da liberdade
associada às Leis Morais.
Compreendendo essas estruturas da vida, o ser humano
passa a enfrentar melhor, e mais conscientemente, as vicissitudes, as
adversidades, percebendo nelas, de um lado, o reflexo natural daquilo que ele
pode estar semeando e, de outro, os desafios evolutivos que lhe cumpre
enfrentar. Compreende que esses desafios predispõem, ao indivíduo, o
desenvolvimento de forças insuspeitadas, desconhecidas, que nele estavam
latentes. Ao mesmo tempo, o conteúdo exarado em O Livro dos Espíritos
propõe uma filosofia da convivência pautada, essencialmente, na moral cristã,
sob a ótica do Amor. Logo, amar ao próximo é, também, ser indulgente com suas
limitações, uma vez que todos vivemos na órbita de nossa incompletude.
Sendo a única obra da codificação totalmente ditada
pelos espíritos orientadores, O Livro dos Espíritos inaugurou, sem nenhum
ufanismo, uma nova fase do pensamento humano. É, sem dúvida, um novo paradigma
do conhecimento, possuindo um sólido alicerce doutrinário, sem se tornar, no
entanto, temporalizado, fechado, pois que acompanha o avançar das novas informações
e saberes.
Portanto, O Livro dos Espíritos veio para ficar! Todo o
seu potencial filosófico, como buscamos refletir até agora, enseja uma revisão
do existencialismo e do materialismo. Seus argumentos são intelectualmente bem
fundados, e sua essência restaura uma visão otimista da vida, situando-a no
contexto da evolução ético-espiritual do homem, ser imortal e pluriexistencial,
criado por Deus, para lograr a plenitude.
[i] Autor do
livros: Filosofia da Convivência e O Desafio da Felicidade
[ii] Citado
por Herculano Pires. Introdução à
Filosofia Espírita. 2ª. ed. São Paulo: FEESP, 1993. P. 20.
[iii]
MARCONDES, Danilo. Para que serve a
filosofia? (Prefácio) In. Café Philo: As grandes indagações da
filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
[iv] Kardec
nos oferece o seu próprio depoimento: “Eu precisei mais de um ano de trabalho
para ficar convencido.” In. O Que é o Espiritismo. 32ª. ed. FEB. Cap. 1. Pág. 52. .
[v] O Livro
dos Espíritos. Introdução, item XIII.
[vi] Idem.
Conclusão, item VII.
[vii]
Revista Espírita, julho 1864 (“A Religião e o progresso”)
[viii] O
Livro dos Espíritos. Conclusão, item VII.
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