terça-feira, 28 de outubro de 2014

A procura de uma nova ordem social em que o homem não seja o lobo do homem, mas o seu irmão, é o sonho de toda a humanidade

Extratos da introdução ao Livro Socialismo e Espiritismo de Leon Denis, por Freitas Nobre.

A procura de uma nova ordem social em que o homem não seja o lobo do homem, mas o seu irmão, é o sonho de toda a humanidade. Nenhum cidadão de sentimentos firmados nos princípios do Cristianismo pode aceitar, sem uma justa reação, as disparidades sociais e econômicas que colocam fabulosas riquezas – em geral mal ganhas e mal utilizadas - ao lado de agrupamentos de párias que não têm o mínimo para sobreviver. Kardec, em Obras Póstumas, no capítulo “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, como em O Livro dos Espíritos, destaca: “Risquem-se das leis e das instituições, das religiões e da educação, os últimos restos da barbárie e os privilégios; destruam-se por completo todas as causas que dão vida e desenvolvimento a estes eternos obstáculos do verdadeiro progresso e que, por assim dizer, aspiramos por todos os povos na atmosfera social, e então os homens compreenderão os deveres e benefícios da fraternidade, e a liberdade e igualdade se estabelecerão por si mesmas de qualquer forma”. Estava Kardec seguro de que chegaremos a essa fase de justiça social com liberdade e igualdade e, ainda em Obras Póstumas, pode orientar para que a alcancemos, afirmando: “a aspiração do homem para uma ordem de coisas melhor que a atual é um indício certo da possibilidade de que chegará a ela. Cabe, pois, aos homens amantes do progresso ativar esse movimento pelo estudo e a prática dos meios julgados mais eficazes”. Essa compreensão das mudanças de estrutura e da própria ordem social está profundamente comprometida com o conteúdo da doutrina espírita, que se baseia na justiça da reencarnação, mas que atribui ao ser humano a tarefa fraterna de auxiliar o irmão, procurando eliminar as diferenças através de uma prática social que permita ao homem auxiliar o semelhante necessitado com os bens que possua

Os dogmas que envelheceram reclamam uma outra vivência e, por isso, a revolução que representou o Cristianismo, abalando os alicerces do poderio romano na palavra meiga do Nazareno, tem o mesmo sentido da revolução que o Espiritismo prega, visando a destruição do egoísmo e levando os homens à convicção de que nada possuem de seu, pois que são meros depositários dos bens materiais e simples usufrutuários da riqueza. Desse depósito e desse usufruto haverão de dar conta na sucessão das reencarnações. Não havia violência na pregação de Jesus, embora Ele fosse claro e preciso com referência à riqueza, toda vez que lhe era propiciada uma oportunidade de manifestar-se. E os apóstolos seguiram-lhe os passos. A própria Igreja Católica procura atualizar-se socialmente, como se fizesse uma autocrítica na procura do Cristianismo primitivo. Tem, no entanto, dificuldades intransponíveis, porque a estrutura conservadora de muitos séculos é uma séria barreira ao encontro da via socialista para diminuir as desigualdades flagrantes e as injustiças sedimentadas pela ordem social vigente. O problema, porém,  não estava apenas em diagnosticar as raízes da miséria e em condenar a voracidade do capitalismo, mas em procurar os caminhos para essa justiça social que foi banida do planeta. Aí, as dificuldades se acumularam e a Igreja não passava do diagnóstico... A conversão cristã teria que vir com a revisão de Zaqueu, no encontro com Jesus, anulando as injustiças praticadas com a restituição dos bens e a dispensa dos privilégios que mantinha. Enquanto a conversão de Zaqueu não se amplia com a repetição do gesto, a ordem estabelecida fica intocável e o comprometimento com as iniquidades sociais e com as estruturas sedimentadas é reafirmado a cada momento. Não foi uma advertência vã a de Jesus ao moço rico que pretendia segui-lo e ao qual recomendou que deixasse seus bens, nem a observação quanto ao óbolo da viúva que dera tão pouco e no entanto fora a dádiva maior, porque enquanto outros ofertaram do que lhes sobrava, ela doara do que lhe fazia falta. Não foi, também, sem razão que as lições se repetiram, demonstrando que a riqueza deveria estar a serviço da comunidade de tal maneira que o mau uso da propriedade poderia significar maiores empecilhos para alcançar o Reino dos Céus. “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mateus 19:24) No Deuteronômio (15,4) está o clamor para que não haja lugar para a pobreza, com a condenação dos lucros e juros, no Levítico (25, 35, 38) ou a condenação de exploração do homem (Levítico, 19:13). As lições do Cristianismo primitivo estão vivas, renascendo nos princípios da doutrina espírita que eclodiu praticamente com a revolução industrial na Europa.

A substituição de um sistema social por outro não foi a solução, porque o que se faz necessário é uma ordem social baseada na fraternidade e no amor ao semelhante. As próprias nações ricas luxam à custa da miséria do denominado terceiro mundo, fornecedor de matérias-primas, mergulhado num alarmante índice de mortalidade infantil, fornecendo uma mão-de-obra aviltada numa atmosfera de doenças, de miséria e de fome, onde o homem não se diferencia do animal no tratamento que recebe. Por isso mesmo, Kardec pôde comparar as nações aos homens quando advertiu que se elas seguissem o preceito de não fazer às demais o que não desejassem que lhes fizessem, o mundo viveria sob o signo da paz e do progresso. “Vencido o egoísmo, será mais fácil extirpar as outras paixões que corroem o coração humano”, lembra Léon Denis. De fato, o nosso edifício social a ser construído pelo Socialismo pode não excluir todas as iniquidades, porque a condição humana não é de perfeição, mas, sem dúvida, significará muito na edificação de uma sociedade menos injusta. A constatação dessas iniquidades não é feita apenas pelos espíritas que pregam uma ordem social mais cristã. A iníqua repartição das rendas vem propiciando um perigoso afrontamento das classes sociais. A posse dos meios de produção concentra-se nas mãos de grupos poderosos ou do Estado, ao mesmo tempo em que se acelera a desnacionalização das economias nacionais, pelo domínio crescente das multinacionais”.

A revolução que significa o Espiritismo é mais profunda, porque penetra as bases do comportamento humano e implica uma revisão de princípios morais, sem o que a revisão jurídica, econômica e social não seria alcançada com eficácia.

Duas partes distintas: o Estado dos pobres e o dos ricos, que se digladiam”. O Espiritismo, embora compreenda e explique certos fenômenos sociais e econômicos através da lei da reencarnação, tem que ser eminentemente revolucionário no sentido de reivindicar as mudanças da estrutura da sociedade, combatendo a concentração da riqueza e a ausência de fraternidade que significam a manutenção dos privilégios e dos excessos no uso dos bens. Jesus, filho de artesãos, ensinando pelo próprio nascimento a grande lição evangélica dos simples e o amor pelos pobres, foi um revolucionário por excelência, mas não se transformou num caudilho a serviço de grupos ou partidos, porque sua missão transcendia as misérias do império romano e não podia, por isso mesmo, perder-se no labirinto das paixões políticas e das artimanhas da burocracia da administração. 

A vida de Jesus e dos apóstolos ao lado da população cristã de Jerusalém era a demonstração prática e real dos ensinamentos que pregavam a fraternidade e a vida comunitária. É evidente que os tempos são outros e que com o progresso técnico e científico, com a revolução industrial e as mudanças sensíveis na forma de vida e de convívio social, não se poderia reproduzir a mesma atmosfera e exigir da comunidade atual que vivesse como os apóstolos. No entanto, os princípios que fundamentavam aquela vida, ou seja, o sentido de cooperação e de auxílio, o amor pelos humildes e necessitados, a repartição dos bens com o semelhante, a predominância do sentimento sobre a ganância, do amor sobre o ódio, são imutáveis no correr dos séculos e marcam o verdadeiro sentido cristão da vida. O Espiritismo não prega novidade quando realiza o chamamento à vida simples e fraterna. Figuras inesquecíveis como São Vicente de Paulo e São Francisco de Assis, há séculos, são legendas desse amor cristão. O fundador da Ordem dos Franciscanos era filho de um rico comerciante e, no entanto, ao invés de herdar-lhe os bens e a fartura, atendeu ao chamamento de uma “voz interior”, voltando-se para os pobres. E São Vicente de Paulo teve sua biografia resumida numa frase que costumamos reproduzir pela beleza da comparação: “Nele, como em certas plantas nas quais as flores nascem antes da folhagem, a caridade nasceu antes da razão”. 

Como, no entanto, eliminar “as pragas da propriedade privada” de que falava Thomas Morus na Utopia? Como continuidade histórica do Cristianismo, o Espiritismo no seu sentido evolucionista caminhou para o encontro com os ideais socialistas e não teve dúvida em afirmar através de Kardec que “uma nova ordem de coisas tende a estabelecer-se e os mesmos que a isso se opõem com mais empenho são exatamente os que mais o ajudam, sem sabê-lo”. Mas onde estariam essas pragas da propriedade privada? Einstein, citado por Humberto Mariotti (O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização – Edicel, São Paulo, 1967), em afirmativa constante de artigo na revista Gauche Européenne, de Paris, janeiro de 1957, apontava essas causas: “A anarquia econômica da sociedade capitalista, tal como existe hoje, constitui, a meu ver, a fonte real de todo o mal”. E prossegue Einstein: “Por uma questão de clareza, chamará doravante por trabalhadores a todos aqueles que não compartilhem da propriedade dos meios de produção, ainda que isto não corresponda ao uso normal do termo”. Para o Espiritismo, os bens são concedidos em custódia e o seu usufruto apresenta valores espirituais que são creditados aos que compreenderam que esses bens não lhes pertencem, sendo o homem mero instrumento no uso da propriedade a serviço do conjunto social.

.. É procurar a verdade e dizê-la; é não seguir a lei da mentira triunfante, e não fazer da nossa alma, da nossa boca e das nossas mãos eco dos aplausos imbecis e dos gritos fanáticos”. Reconhecemos que o capitalismo envelheceu e que muitas foram as modificações por que passou a sociedade. Assistimos ao surgimento do contrato trabalhista, eliminando o trabalho escravo – embora ainda vigente mesmo depois da abolição da escravatura –, a redução das horas de trabalho, as férias, as licenças, o descanso semanal remunerado, etc. Mas a sociedade capitalista, por sua vez, reagiu a essas conquistas e, assim, confiou à inteligência jurídica da época as medidas legais que lhe facultassem sobreviver e aí se instalaram os trustes, as multinacionais, as sociedades anônimas, os títulos de crédito, a garantia fiduciária, as fortunas móveis, que encontram tranquilo sono no segredo dos depósitos de bancos suíços, as falências que deixam os falidos mais ricos do que antes... Essas adaptações de sobrevivência justificaram afirmações como estas de Walter Lippmann e Nicholas Murray Butler, respectivamente (Walter Lippmann, A Cidade Nova, 1938, páginas 32 e 329): “O capitalismo moderno não teria podido se desenvolver se a sociedade por ações não existisse”. “A sociedade por ações foi a maior descoberta dos tempos modernos, mais preciosa que a do vapor e da eletricidade”.

 O livro de Léon Denis tem a virtude de reativar o debate em torno do Socialismo e do Espiritismo, permitindo a continuidade de uma análise que julgamos oportuna, especialmente agora quando o Partido Socialista, na França, elegendo o seu Presidente, procura, sem a violência das revoluções pelas armas, as modificações viáveis para abrir caminho ao programa de socialização gradual, democraticamente, respeitada a estrutura pluripartidária. O imposto sobre a fortuna – medida adotada pelo governo socialista da França – é já um passo importante na melhor distribuição da renda, fazendo utilizar o excesso da concentração de bens e capital em favor das camadas necessitadas e desassistidas. Afinal, a natureza nos ensina com a essência da vida, nada nos cobrando pelo ar que respiramos, pela chuva que alimenta as lavouras e mantém os rios, pela luz que nos chega todos os dias, pelo calor que o sol distribui a todos, sem indagar de origem, condição social, econômica e geográfica, exemplificando com a gratuidade de seus serviços e sem a procura de recompensa. A lição da natureza dando o seu capital sem reivindicar lucros ou vantagens, proveitos ou benefícios, é uma legenda inscrita na consciência coletiva, reclamando do homem a exemplificação da fraternidade, que está na palavra do Divino Reformador quando aconselhou fazer ao semelhante o que desejamos que ele nos faça.  

(Abril de 1982)

Freitas Nobre

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