sábado, 18 de maio de 2019

Experiência quase Morte - EQM - "UM RESSUSCITADO CONTRARIADO"


Extraído da viagem do Sr. Victor Hugo à Zélande.  
(Revista Espírita - dez/1867 - Allan Kardec)

 O episódio seguinte foi tirado do relato publicado pelo jornal Ia Liberte, de uma viagem do Sr. Victor Hugo à Holanda, na província de Zélande. Este artigo se acha no número de 6 de novembro de 1867.





"Acabamos de entrar na cidade. Eu tinha os olhos erguidos e fazia notar a Stevens, meu vizinho de banco, a moldura pitoresca de uma sucessão de telhados hispano flamengos, quando, a seu turno, ele me tocou o ombro e me fez sinal para olhar o que se passava no cais.

"Uma multidão barulhenta de homens, mulheres e crianças cercou Victor Hugo. Descendo da viatura e escoltado pelas autoridades da cidade, ele avançava, o ar simplesmente emocionado, a fronte descoberta, com dois buquês nas mãos e duas jovens de túnica branca ao seu lado. Eram as jovens que vinham lhe oferecer os dois buquês. "Que dizeis, por esse tempo de visitas coroadas e de ovações artificiais ou oficiais, dessa entrada ingenuamente triunfante de um homem universalmente popular que chega, de improviso, a uma região perdida, da qual nem suspeitava a existência, e que se encontra muito naturalmente em seus Estados? Quem teria podido fazer o poeta prever que essa pequena cidade desconhecida, da qual tinha considerado de longe a silhueta com curiosidade, era a boa cidade de Ziéricsée?

"Ao jantar, o Sr. Van Maenen disse a Victor Hugo: " - Sabeis quais são essas duas lindas crianças que vos ofertaram os buquês? "-Não. " - São as filhas de um fantasma.

 "Isto pede uma explicação, e o capitão nos contou a aventura estranha que eis aqui: "Há mais ou menos um mês disto.

Uma tarde, ao crepúsculo, uma viatura onde estavam um homem e um rapaz entrou na cidade. É preciso dizer que esse homem tinha, pouco tempo antes, perdido sua mulher e um de seus filhos, e com isto ficou muito triste. Se bem que tivesse ainda duas jovens e o rapaz que estava nesse momento com ele, não tinha se consolado e vivia na melancolia. "Naquela tarde, seguindo um desses aterros elevados e abruptos que estão, à direita e à esquerda, bordados de um fosso de água estagnada e frequentemente profunda.
Súbito o cavalo, mal dirigido, sem dúvida, através da bruma da tarde, perdeu bruscamente o equilíbrio e rolou do talude no fosso, arrastando consigo a viatura e a criança. "Houve, nesse grupo de seres precipitados, um momento de angústia horrível, do qual ninguém foi testemunha, e o esforço obscuro e desesperado para a salvação. Mas o tragamento se fez com a desordem da queda, e tudo desapareceu na cloaca, que se fechou com a espessa lentidão da lama.

"Só a criança, que permaneceu por milagre fora do fosso, gritava e chamava lamentavelmente, agitando seus bracinhos.

Dois camponeses, que atravessavam, a alguma distância dali um campo de garança (raízes de árvores), ouviram seus gemidos e acorreram. Eles retiraram a criança. "A criança gritava: "Meu papá! meu papá! eu quero meu papá!" " - E onde está, pois, teu papá? - Lá, dizia a criança, mostrando o fosso. "Os dois camponeses compreenderam, e consideraram a tarefa.

Ao cabo de um quarto de hora, eles retiraram a viatura quebrada; ao cabo de meia hora, eles retiraram o cavalo morto.
O pequeno gritava sempre e pedia seu pai. "Enfim, depois de novos esforços, no mesmo buraco da fossa que a viatura e o cavalo, eles repescaram e trouxeram fora da água alguma coisa de inerte e de fétida que estava inteiramente negra e coberta de lodo: era um cadáver, o do pai.

Tudo isto havia tomado em torno de uma hora. O desespero da criança redobrava; não queria que seu pai estivesse morto. Os camponeses o acreditavam bem morto, no entanto; mas como a criança lhes suplicava e se agarrava a eles, e que eram brava gente, eles tentaram para acalmar o pequeno, o que se faz sempre em semelhante caso naquela região, e se puseram a rolar o afogado no campo de garança.

"Eles o rolaram assim um bom quarto de hora. Nada se mexeu. Eles o rolaram ainda. A mesma imobilidade. O pequeno seguia e chorava. Eles recomeçaram uma terceira vez, e iam renunciar por tudo de bom, quando lhes pareceu que o cadáver movimentava um braço. Eles continuaram. O outro braço se agitou. Eles se animaram. 

O corpo inteiro deu vagos sinais de vida, e o morto se pôs a ressuscitar lentamente. "Isto é extraordinário, não é? Pois bem! Eis o que é mais inesperado ainda. O homem suspirou longamente em retornando à vida e gritou com desespero:
"Ah! Meu Deus! o que fizestes? Eu estava tão bem lá onde eu estava. Eu estava com minha mulher, com meu filho. Eles tinham vindo a mim, e eu a eles. Eu os via, estava no céu, estava na luz. Ah! Meu Deus! o que fizestes? Eu não estou mais morto."

 "O homem que assim falava vinha de passar uma hora na lama. Tinha o braço quebrado e contusões graves. "Foi levado para cidade, e somente acabara de sarar, acrescentou o Sr. Van Maenen acabando de nos contar esta história.

O Sr. D..., é uma das mais altas inteligências, não só da Zélande, mas da Holanda. É um de nossos melhores advogados. Todo mundo o estima e honra aqui.

Quando ele soube, senhor Victor Hugo, que iríeis passar pela cidade, ele quis absolutamente se levantar de seu leito, que não tinha deixado ainda há um mês, e fez hoje sua primeira saída para ir diante de vós e vos apresentar suas duas jovens, a quem tinham dado para vós os buquês. "Não houve senão um grito por toda a mesa.

"Ai estão as coisas que não se passam senão em Zélande! Os viajantes a ela não vêm mais, mas os habitantes a ela retornam.

"Dever-se-ia convidá-lo para jantar, opinou a parte feminina da mesa. " - Convidá-lo! exclamei; mas nós já éramos doze! Não era precisamente o momento de convidar um fantasma.

Gostaríeis, senhoras, de ter um morto por décimo terceiro? "

- Há, disse Victor Hugo, que tinha ficado em silêncio, dois enigmas nessa história, o enigma do corpo e o da alma. Eu não me encarrego de explicar o primeiro, nem de dizer como se pode que um homem permaneça tragado toda uma grande hora numa fossa sem que a morte se siga.

A asfixia, é preciso crê-lo, é um fenômeno ainda mal conhecido. Mas o que compreendo admiravelmente, é a lamentação dessa alma. O quê! Ela já tinha saído da vida terrestre, dessa sombra, desse corpo enlameado, desses lábios negros, dessa fossa negra! Ela tinha começado a evasão encantadora. Através da lama, ela tinha chegado à superfície do fosso, e lá apenas ligada ainda pela última pena de sua asa a esse horrível último suspiro apertado de lama, ela já respirava, silenciosamente o fresco inefável de fora da vida. Ela já podia volitar até seus amores perdidos e alcançar a mulher, e se levantar até a criança.

De repente, a semi-evasão estremece; sente que o laço terrestre, em lugar de se romper inteiramente, se restabelece sob ela, e que, em lugar de subir na luz, desce bruscamente na noite, e que ela, a alma, se a faz violentamente reentrar no cadáver.

 Então, ela produz um grito terrível. "O que resulta disto para mim, acrescentou Victor Hugo, é que a alma pode permanecer um certo tempo acima do corpo, no estado flutuante, não estando mais prisioneira e não estando ainda liberta. Esse estado flutuante é a agonia, é a letargia. O estertor é a alma que se lança fora da boca aberta e que ali cai por instantes, e que sacode, ofegante, até que se quebre o fio vaporoso do último sopro. Parece-me que eu a vejo. Ela luta, se escapa pela metade dos lábios, ali reentra, se escapa de novo, depois dá um grande golpe de asa, e ei-la que voa de um impulso e que desaparece no imenso céu. Ela está livre. Mas, algumas vezes também, o agonizante retorna à vida; então, a alma desesperada retorna ao agonizante. O sonho nos dá, às vezes, a sensação dessas estranhas idas e vindas da prisioneira. O sonho são alguns passos cotidianos da alma fora de nós. Até que ela tenha acabado seu tempo no corpo, a alma faz, cada noite, em nosso sono, o giro do pátio do sonho. ("PAULDELAMILTIÈRE)."



Abaixo, comentários de Allan Kardec


O fato em si mesmo é eminentemente espírita, como se o vê; mas se é alguma coisa de mais espírita ainda, é a explicação que lhe dá o Sr. Victor Hugo; dir-se-ia textualmente na Doutrina; de resto, não é a primeira vez que ele se expressa nesse sentido. Se lhe lembra o encantador discurso que ele pronunciou, há três anos, na tumba da jovem Emily Putron (Revista Espírita de fevereiro de 1865, página 59); seguramente, o Espírita, o mais convicto, não falaria de outro modo. A tais pensamentos não falta absolutamente senão a palavra; mas que importa a palavra se as idéias se acreditam! O Sr. Victor Hugo, por seu nome autorizado, dela é um vulgarizador. E, no entanto, aqueles que as aclamam em sua boca ridicularizam o Espiritismo, nova prova que não sabem em que ele consiste. Se o soubessem, não tratariam a mesma idéia de loucura em uns, e de verdade sublime nos outros.                                                        

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